Em casa onde se falta o pão, todos brigam, ninguém tem razão. Assim é o Congresso Nacional. Aborrecidos com a demora na liberação das verbas para as emendas parlamentares incluídas no Orçamento Geral da União (OGU) de 2009 a base aliada já avisou que vai “congelar” as votações do interesse do Palácio do Planalto e, entre elas, as novas regras para licitações das obras da Copa das Confederações em 2013, a Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, ou seja, a famigerada MP 527/2011 (Projeto de Conversão 17/2011) que institui o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) que na votação do último dia 28 a Câmara através de emendas estabelece o acesso dos tribunais de contas como, por exemplo, o TCU (Tribunal de Contas da União) poderá ter acesso aos custos acabando com o sigilo e os licitantes só saberão da estimativa dos preços após a licitação. Outra emenda retirou a possibilidade de a Federação Internacional de Futebol (FIFA) e o Comitê Olímpico Internacional (COI) exigirem mudanças nos projetos básico e executivo de obras dos eventos esportivos sem limites para aumento do orçamento. Agora segue para o imprestável Senado Federal onde MP 527/11 deverá sofrer mais emendas posto que não satisfaça os interesses dos empreiteiros e várias entidades que os representam, caso contrário não estariam estrilando. E o presidente do Senado José Sarney (PMDB-AP) disse que verificou no texto da MP que não há nenhum dispositivo sobre sigilo nas obras públicas, mas sim um mecanismo para inibir que as empresas combinem preços entre si, isto quer dizer que o sigilo poderá ser reintroduzido no texto. Aliás, este politicossauro, dias atrás, revelou que era contra o sigilo. O que deve ter acontecido para mudar de opinião? Bem, devemos considerar que já é um octogenário? Os tais aliados (cúmplices, chantagistas, mercenários, aves de rapina, tanto faz) também pleiteiam a prorrogação por, pelo menos, seis meses do decreto que cancela em 30 de junho as emendas que não foram liberadas até esta data ou, no linguajar parlamentar, “restos a pagar”. Segundo a ministra (sic) das Relações Institucionais Ideli Salvatti “o presidenta” Dilma DuCheff acha-se irredutível em não atender ao pleito dos “senhores” parlamentares (Collor, 1990-1992, também era irredutível em não atender as “solicitações” dos parlamentares e todos sabem no que deu).
Esse RDC (Regime Diferenciado de Contratações) teve como base o sistema utilizado no Reino Unido para a realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2012 com mecanismos antifraude. Desse sistema foram copiados modelos como a contratação integrada (o contratado deverá realizar todas as etapas até sua entrega ao contratante em condições de operação. Ele será responsável também pela elaboração dos projetos básico e executivo, documentos técnicos em que todos os aspectos são detalhados. Atualmente, a lei prevê que esses projetos sejam feitos por empresas diferentes da executora). Tem também a inversão das fases da licitação onde primeiro são definidos os finalistas para só depois proceder-se a habilitação. Com este mecanismo somente as empresas escolhidas para a segunda fase precisarão comprovar a capacidade técnica para a realização da obra ou serviço a ser contratado reduzindo seus custos e acelerando todo o processo. Mas, convenhamos, se o Reino Unido preocupou-se tanto em criar um sistema antifraude porque o governo brasileiro teria tal preocupação se a sua relação com os empreiteiros é notoriamente promíscua? O RDC inova também em relação à Lei das Licitações (Lei 8.666/93), pois determina que o preço total estabelecido pela contratada deva conter valores que não serão corrigidos, sendo assim os preços já constarão devidamente superfaturados e com todas as propinas incluídas. As correções só poderão ser feitas nos casos de desastres naturais ou exigências internacionais (com acréscimos de 25% e 50% aos contratos originais). Bem, as primeiras são atípicas em nosso país (terremotos, tsunami, furacões, inundações etc.), mas as segundas são uma caixa de Pandora.
A necessidade de se criar um mecanismo (RDC) para as obras dos eventos esportivos que acontecerão em 2013, 2014 e 2016 deve ser atribuída tão somente a incompetência do governo. Há anos é sabido e conhecido o país onde tais eventos ocorreriam e não se fez coisa alguma e agora apelam para o deplorável “jeitinho brasileiro” para acelerarem o processo. Com este instrumento o governo estará liberado para contratar empresas sem que as exigências contidas na Lei 8.666/93 (Lei das Licitações) sejam cumpridas abrindo caminho largo para os costumeiros desvios de dinheiro público e demais irregularidades corriqueiramente praticadas. O Ministério Público Federal, no último dia 10, apontou em seu parecer evidentes inconstitucionalidades no chamado RDC. O órgão considerou o modelo proposto extremamente subjetivo, e isto é ótimo para a pilantragem oficial e extra-oficial. As declarações do ministro dos Esportes Orlando Silva Jr. (o homônimo cantor era infinitamente melhor. Orlando Garcia Silva, 1915-1978) dão conta de que é favorável ao sigilo. Segundo ele, a omissão do volume de recursos dos orçamentos evitará o lobby de grandes empresas, que combinariam o preço inicial dos pregões de modo a obter o valor máximo das licitações. Ainda de acordo com o ministro, apenas empresas que participarão dos pregões estarão impedidas de saber os valores envolvidos. Mas não explicou como será evitado um eventual vazamento isto porque naturalmente não sabe ou sabe que não será evitado. Ora, ministro vá comer sua tapioca e vê se fecha a boca, mas pague com o seu dinheiro e não com o cartão corporativo.
Sempre fui e continuarei a ser contra a realização de eventos de tal magnitude no Brasil pelo simples fato de não considerá-los relevantes. Governar é estabelecer prioridades e, definitivamente, a Copa das Confederações, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos não se encontram nesta categoria. Um dos argumentos para justificar sediar tais eventos é que haverá melhorias que irão beneficiar toda a população. Mas não me ocorre que haja qualquer equipamento remanescente dos Jogos Pan-americanos realizados no Rio de Janeiro que cumpriram este papel. Como exemplo do que ocorrerá após o evento basta ver as obras e equipamentos construídos para a Copa do Mundo de 2010 na África do Sul e dos Jogos Olímpicos na China. Num país onde a maioria da população carece de saneamento básico, obras de infra-estrutura, saúde, educação, habitação, segurança pública, transportes, empregos, salários dignos, etc. e etc. patrocinar uma queima de recursos públicos espetacular como se avizinha é, podemos dizer, um crime contra a humanidade. A quem interessa a realização de tais eventos? Resposta: a corja de sempre (banqueiros, empreiteiros, especuladores, políticos e outras tralhas). Para termos uma idéia da corrupção que gira em torno do negócio basta olhar para o exemplo do Maracanã (Estádio Mário Rodrigues Filho, 1908-1966, lutou com vigor para a sua construção para sediar a Copa do Mundo de 1950) já foi reformado oitocentos trilhões de vezes (é o mais reformado do mundo) e, nesta última reforma, além do valor exorbitante denuncia-se diariamente o envolvimento do governador Sérgio Cabral com Fernando Cavendish, dono da Empreiteira Delta em relações onde o público e o privado se unem incestuosamente. Então reafirmo o título desta matéria com todas as letras.
CELSO BOTELHO
29.06.2011