“No Estado presente do Brasil, em que os partidos se aborrecem e cabalam, na desordem das Finanças, o Ministério e o Conselho de Estado precisam muito de ter grande pulso, muito tino e circunspecção, conhecimentos vastos e fundados de governo político, e, sobretudo estima e reputação pública. Só esta combinação de elementos bem reunidos é que pode curar pouco a pouco as chagas do Estado – nada de bazófia e orgulho, porém modéstia, franqueza e boa-fé. E tem os nossos homens públicos estas qualidades? Tem sido esta a marcha do governo do Brasil?” (José Bonifácio, 13.06.1763/06.04.1838).
Dizia o grande brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948), hoje acusado de racismo e com seus livros vetados pelo MEC, que um país se faz com homens e livros e, podemos acrescentar, com exemplos. Preferencialmente os bons exemplos, mesmo que dos maus possamos sempre aprender alguma coisa. A memória histórica brasileira é sistematicamente omitida, distorcida, negligenciada, aviltada, manipulada e apagada conforme os interesses claramente percebidos neste ou naquele contexto histórico. Mas isto não é um privilégio dos brasileiros. Inúmeros países, em diversas épocas, também praticaram ações no sentido de moldar situações, fatos e personagens históricos em sintonia com os seus interesses políticos, econômicos, sociais, culturais ou religiosos. Portanto, cabe ao historiador desfazer mitos, lendas, estereótipos, preconceitos, discriminação, lançando-se à pesquisa minuciosa, seja em fontes primárias, secundárias ou não convencionais, concebendo uma metodologia capaz de dar conta de uma interpretação histórica desvencilhada o máximo possível da carga cultural que por certo detém, uma vez que uma neutralidade plena seja impossível alcançar. A menos que o historiador limite-se a transcrever os documentos oficiais sem qualquer análise, questionamentos e interpretação.
Os mitos acompanham as civilizações desde seus primórdios e, em inúmeros casos, guardam relações entre si, evidentes ou sutis, até mesmo quando se encontram distantes no tempo e no espaço. Na modernidade os mitos também se estabelecem e não é raro estarem acompanhados de fatos verídicos e mesmo com alguma base científica ou, por outro lado, desprovidos de qualquer valor que se lhe possa atribuir. O mito, por assim dizer-se, foi uma maneira de explicar-se o mundo e ainda hoje o utilizamos frequentemente nas mais diversas ocasiões e circunstâncias. Exemplo: quando uma criança pergunta como ela nasceu naturalmente usaremos o mito da cegonha e jamais recorreremos a um tratado sobre reprodução humana. O mito fundador exerce uma influência muito abrangente no imaginário popular criando e reforçando crenças, expectativas, sentimento de pertencimento e unidade nacional.
Houve todo empenho em construir um herói nacional com a proclamação da República e o eleito foi Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. O mito fundador é organizado de acordo com a ideologia dominante que se alimenta das representações por ele produzidas atualizando-o para adequá-lo aos sucessivos contextos históricos. As identidades nacionais precisam de vários elementos para ser forjadas e um herói é indispensável. Perceba que até a forma de retratá-lo remete a figura do alferes à imagem Jesus Cristo. O primeiro autor a estabelecer esta associação foi Joaquim Norberto de Souza e Silva (1820-1891) em sua obra História da Conjuração Mineira de 1873. Em 1867, Joaquim Saldanha Marinho, presidente da província de Minas Gerais, mandou erguer um monumento em sua homenagem em Vila Rica. Mas foi a partir dos conflitos entre monarquistas e republicanos, respectivamente numa luta simbólica entre a figura de D. Pedro I e Tiradentes, que este último ganhou a conotação política de salvador da pátria brasileira. Tiradentes foi inventado pela República que precisava de um herói, posto que não possuísse nenhum que pudesse sintetizá-la e sustentá-la num momento que estava criando um novo país e com novos valores. Um mártir nacional que contagiasse todos despertando um sentimento nacionalista, um símbolo da resistência e amor à pátria. No ano de 1965, o presidente Castelo Branco sancionou a lei (Lei 4.897 de 09.12,1965) que tornou Tiradentes “o patrono cívico da nação brasileira”, colocando o herói como o pai da nação.
O espaço concedido a Tiradentes até os dias atuais, contrastado com outros personagens de igual ou até mesmo maior importância para a fundação da nação brasileira, mostra uma diferença abissal. Atualmente, felizmente, encontramos professores que, em sala de aula, questionam a imagem de Tiradentes enquanto um mito, como a historiografia nacionalista o criou. Problematizar os fatos nos quais esteve envolvido Tiradentes não de maneira divinizada e sim como um sujeito político, com intenções, atuante em seu tempo e vinculado a outros sujeitos históricos também presentes naquele momento (escravos, mulheres, indígenas, etc.). Ressalte-se que nossa intenção não é a de contestar a validade do personagem histórico ou atirar-se em campanha para suprimir-lhe ou minimizar-lhe a importância. Nosso objetivo é de apresentar um personagem fundamental para a formação da nação e que tem sido negligenciado pela história ao destinar-lhe um papel quase que secundário e esvaziado da importância que detém. Falamos de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência. Apenas conceder-lhe este título não significa que fizemos justiça. Tiradentes é mais conhecido pelo feriado que se faz em sua homenagem do que pelo que realmente representa. José Bonifácio nem isso. Tanto Tiradentes quanto José Bonifácio eram tidos e havidos como vilões no seu tempo, no julgamento da Corte portuguesa. A História mostra, com inúmeros exemplos, uma alternância para identificar personagens, ora santificados ou demonizados, de acordo com os interesses do momento.
O historiador inglês Kenneth Maxwell, autor de "A Devassa da Devassa" (Rio de Janeiro, Editora Terra e Paz, 2ª ed. 1978.) diz que "a conspiração dos mineiros era, basicamente, um movimento de oligarquias, no interesse da oligarquia, sendo o nome do povo invocado apenas como justificativa", e que objetivava, não a independência do Brasil, mas a de Minas Gerais. O historiador carioca Marcos Antônio Correa defende que Tiradentes não morreu enforcado em 21 de abril de 1792. Correa começou a suspeitar disso quando viu uma lista de presença da Assembleia Nacional francesa de 1793, onde constava a assinatura de Joaquim José da Silva Xavier, cujo estudo grafotécnico permitiu concluir que se tratava da assinatura de Tiradentes. Segundo Correa, um ladrão condenado morreu no lugar de Tiradentes, em troca de ajuda financeira à sua família, oferecida pela maçonaria. Testemunhas da morte de Tiradentes se diziam surpresas, porque o executado aparentava ter menos de 45 anos. Sustenta Correa que Tiradentes teria sido salvo pelo poeta Antonio Dinis da Cruz e Silva (1731-1799) maçom, amigo dos inconfidentes e um dos juízes da Devassa e embarcado incógnito para Lisboa em agosto de 1792. O historiador menciona uma carta do desembargador Simão Pires Sardinha (1751-1808) onde relata haver encontrado uma pessoa semelhante a Tiradentes que, ao vê-lo, saiu correndo. As evidências são muito frágeis, por enquanto, para afirmarmos se isto realmente aconteceu. Serão necessárias pesquisas mais aprofundadas recorrendo a fontes inéditas e também praticamente desconhecidas. Contudo, o irmão de José Bonifácio, Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1755-1844), disse que não fora Tiradentes que morrera enforcado e sim outra pessoa e que, após o esquartejamento, sua cabeça desaparecera para que não se pudesse identificar o corpo. Somente com essas referências pode-se perceber que a História não é algo pronto e acabado. É constante o aparecimento de evidências que podem endossá-la ou refutá-la. A história oficial é a construção de símbolos que possam identificar uma sociedade e ser reconhecida no seu tempo. O mito do herói nacional tem a capacidade de aglutinar a população, despertar um sentimento de pertencimento atingindo a memória coletiva e reforçando os ideais positivistas daquela época legitimando a nova forma de governo que se instalava. A construção de um mito é algo complexo e tem objetivos definidos.
José Bonifácio Andrada e Silva (1763-1838) foi alçado a categoria de Patriarca da Independência logo após a emancipação política do Brasil em 1822. Seus contemporâneos Gonçalves Ledo e Evaristo da Veiga reclamaram também o título. Viveu por quase três décadas na Europa só retornando ao Brasil com 56 anos de idade tornando-se conselheiro do príncipe D. Pedro I. Nomeado ministro do Reino e dos Estrangeiros, em 1822, passou a ser hostilizado por liberais e conservadores, e acabou preso e exilado pelo imperador. No entanto, alguns anos depois, José Bonifácio regressou à pátria para assumir o cargo de tutor do futuro imperador D.Pedro II.
Documentos permitem avaliar melhor o desempenho de José Bonifácio. Suas propostas de medidas governamentais, estudos técnicos sobre economia, política e sociedade e sua participação nos debates políticos. São documentos que revelam o homem público, uma imagem complexa de um intelectual típico da Ilustração. Homem culto e viajado, um cientista que percorreu a Europa numa época tumultuada pela Revolução Francesa, o que deixou nele profundo receio dos levantes populares e das revoluções. José Bonifácio confessava ser amante da liberdade controlada, da monarquia constitucional, inimigo dos despotismos, contrário à escravidão do negro (nunca teve escravos, abominava a escravidão e orientou os deputados brasileiros na Assembleia Constituinte Portuguesa, ocorrida pouco antes da independência do Brasil, a defender o fim do regime escravo. José Bonifácio escreveu que o Brasil seria um país digno e feliz quando negros e mulatos fossem cidadãos livres e empreendedores), favorável à concessão dos votos às mulheres e crítico do latifúndio improdutivo. Desprezava homens servis e bajuladores e aqueles que disputavam títulos de nobreza. Atacado pelos liberais por assumir a perspectiva conservadora, e pelos conservadores por seus projetos de transformação da ordem social, tornou-se presa fácil de seus inimigos. A figura do Patriarca, politicamente conservadora, procurava conciliar a liberdade com a ordem, pouco amigo dos “excessos democráticos e da liberdade sem limites”, agradava assim aos políticos e ideólogos que durante o Império (1822-1889) e Primeira República (1889-1930) pregavam um Executivo forte. O historiador Otávio Tarquínio de Souza (1889-1959) escreveu a História dos Fundadores do Império do Brasil, obra que teve um de seus volumes dedicado à biografia de José Bonifácio. A adesão de D. Pedro I ao movimento emancipador deve-se a José Bonifácio, tendo como grande colaboradora a princesa Leopoldina de Habsburgo. José Bonifácio convenceu D. Pedro I a comprometer-se com a independência do Brasil tornando-se imperador e evitando uma guerra civil. Criou as principais instituições que mantiveram a integridade do território brasileiro após a independência de Portugal.
Nosso sistema de valores acha-se, desde muito, desgraçadamente, comprometido, distorcido, manipulado, invertido e corrompido. Apresentam-nos vilões como heróis (e algumas vezes com a ridícula pretensão de semideuses) e os transformam em mitos que são convenientes, mas nem um pouco convincentes. Porém, devido a repetição exacerbada, a propaganda maciça e ao assistencialismo estatal ineficiente e indecente acabam por serem assimilados e até cultuados como verdadeiros salvadores da pátria. No Brasil se constrói mitos a partir da mentira, do engodo, do embuste. A sociedade é conduzida à idolatrar entes diabólicos no conteúdo e aparentemente angelicais na forma. Urge que resgatemos personagens históricos como José Bonifácio e os apresentemos nas escolas como os verdadeiros patriotas e repudiarmos toda e qualquer tentativa de aparelhamento ideológico daqueles que detém o governo e esmeram-se das maneiras mais sórdidas e perversas para tomar o Estado brasileiro. É preciso que estejamos atentos e instrumentalizados para desmistificar e desmascarar as atitudes, posturas e comportamentos objetivamente dirigidos para a limitação do desenvolvimento intelectual do cidadão, em especial as crianças, e sua doutrinação segundo seus pressupostos. Cabe a toda sociedade de um modo geral e aos educadores em particular restabelecer nosso sistema de valores, aprimorá-lo e preservá-lo. Portanto, retirar José Bonifácio do ostracismo, vivificá-lo e colocá-lo em seu devido lugar de fundador do Brasil não o mistificando e sim o apresentando como ser humano com suas angústias, incertezas, convicções e contradições é uma obrigação que professores e historiadores devem ter.
"A maior corrupção se acha onde a maior pobreza está ao lado da maior riqueza." (José Bonifácio)
CELSO BOTELHO
08.10.2012