domingo, 23 de março de 2008

DÍVIDA EXTERNA: NEM TANTO AO CÉU NEM TANTO AO INFERNO.

Para os pecadores católicos a invenção do purgatório foi uma mão na roda. Caso não se comportassem adequadamente para merecer as delícias do paraíso também não amargariam os tormentos existentes no inferno. É mais ou menos isso que acontece a respeito da notícia de que o Brasil se tornou credor internacional pela primeira vez em toda sua História, guardando-se as devidas proporções. Não podemos desconsiderar os méritos deste feito inédito mesmo que sejamos céticos empedernidos ou ácidos opositores do governo petista ou, caso prefiram, do governo Lula. Nós somos acusados de sermos um povo desmemoriado. Não é assim, senão ao contrário. Contudo, vale lembrar, que a euforia em determinados momentos de nossas vidas pessoais, profissionais ou da nação se sobrepõe a razão fazendo-nos esquecer das agruras a que fomos submetidos em passado recente. Sendo assim, precisamos e devemos nos aquietar, examinar os fatos e avaliá-los para se formar um conceito ou uma opinião sensata e conclusiva. De outra forma estaríamos agindo irresponsavelmente, levianamente, com o detestável ranço do preconceito. Acho um bom alvitre derramar um pouco de água fria na fervura dos otimistas e um pouco desta na água fria dos pessimistas e assim obteremos uma temperatura razoável.

A farra com o dinheiro do Brasil certamente não teve início com o advento da independência política em 1822, porém, agora era por nossa própria conta as venturas e desventuras da incipiente nação. Em 1824 efetivou-se o primeiro empréstimo brasileiro no exterior no valor de três milhões de libras esterlinas e, pasmem, tais recursos destinavam-se a quitar dívidas do período imediatamente anterior à Proclamação da Independência. Portanto, a ex-colônia portuguesa iria para a História sem a pecha de caloteira e o recém Império, depois a República, começaria uma longa trajetória de devedor contumaz e inadimplente inveterado. O que se fez na verdade foi um pagamento à Portugal pela compra do reconhecimento da independência. Trocando em miúdos foi um negócio de pai para filho, literalmente, e dos muitos levados a termo décadas a fora.

Com a República vieram às dívidas do Império e um país debilitado economicamente, calcado na cafeicultura e com uma organização bancária ultrapassada. Rui Barbosa (1849-1923) assume como o primeiro ministro da fazenda do novo regime em 1890 implementando um reforma bancária recheada de boas intenções, porém, que se mostrou desastrosa criando a primeira e uma das mais severas crises econômicas brasileiras. O raio da mania de importar estrangeirices, notadamente dos Estados Unidos, prática que, aliás, ainda persiste, fez erudito baiano entrar para a escola monetarista que ensinava a livre emissão de créditos monetários com o objetivo de incrementar a industrialização e desenvolver novos negócios por cá. Foi a festa dos ratos na queijaria. Os estabelecimentos bancários distribuíam empréstimos livres, leves e soltos para qualquer um sem se dar ao luxo de, pelo menos, verificar sua capacidade de pagamento. Foi o sinal para o Encilhamento (arriar, equipar o cavalo, preparando-se para a corrida). Alguém teria que financiar este estupendo volume de empréstimos e ai é que entra o bom e velho governo brasileiro injetando somas formidáveis na economia desvalorizando a moeda e fomentando a inflação. Tais empréstimos fornecidos pelos bancos, na vasta maioria das vezes, sequer eram utilizados para os fins a que se destinavam e quando o eram os estabelecimentos industriais ou comerciais tinham pouca vida. Porém, havia o fenômeno de permanecerem suas ações à venda na Bolsa de Valores e até com significativas valorizações. Era a tão odiosa especulação financeira que surgira acompanhada de empresas inexistentes e outras manhas comprometendo a República que se instalava. Rui Barbosa manteve-se no cargo por 14 meses e a lambança começou a ser sanada pelo presidente Campos Salles da maneira menos engenhosa possível: pedir mais empréstimos. No entanto, os banqueiros europeus negavam-se a concedê-los visto o alto grau de endividamento que já havíamos atingido. A solução foi efetivar uma negociação “funding loan”. As dívidas reuniram-se em uma única e o governo receberia o empréstimo pleiteado com treze anos para pagar e com juros a serem pagos a partir do terceiro ano.

Com a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929, onde os americanos conseguiram a proeza de falirem toda a economia planetária, e a incompetência em enfrentar aquela crise do governo Washington Luís combinado com outros fatores adubou a terra para que florescesse a revolução de 1930. Em 1931 anunciamos o primeiro calote na dívida externa. Somente na Assembléia Nacional Constituinte de 1934 o tema foi abordado e a brincadeira já estava na casa de quase 240 milhões de libras esterlinas. Oswaldo Aranha (1894-1960), revolucionário de 1930, nomeado ministro da economia por Vargas, punha-se contra a contratação de novos empréstimos para efetuar pagamentos de antigos compromissos como, por sinal, era a prática comum. Talvez devessem, àquela época, optar por não pagar as dívidas antigas e aguardar que as novas envelhecessem. Contudo, no período Vargas, a indústria brasileira avançou com o dirigismo econômico e intervencionismo. No início da guerra (1939) a produção da indústria superava, em valores, a agrícola. Oswaldo Aranha, durante quatro anos, implantou o “Esquema Aranha”. A coisa era assim: o país honrou pouco mais do que 33,5 milhões de libras esterlinas quando, na verdade, deveria ter honrado quase 100 milhões delas e o resultado disso foram um ganho real de pouco mais 57 milhões de libras esterlinas, considerando uma redução real nos pagamentos de juros e seus adiamentos dos fundos de amortização. Em 1953, retornando ao mesmo ministério, foi a vez do “Plano Aranha” centrado em combater a inflação. Este plano visava reorganizar o aparato fazendário nacional como codificar o direito tributário e a lei orgânica do crédito público.

A partir de 1956, o presidente JK, oriundo do getulismo, não adotou uma política nacionalista, pelo contrário, lançou mão largamente do capital estrangeiro para por em prática sua política desenvolvimentista apregoada durante a campanha presidencial de “50 anos em 5.” No entanto, preservou os investimentos na indústria pesada dando, porém, uma atenção maior a produção de bens de consumo. Além disso, houve a construção de Brasília em tempo recorde (três anos e dez meses), possível através do cheque em branco nº. 2.874 de 1956 comprometendo todo o orçamento durante e até após o término das obras. A inflação aqueceu-se e, uma vez mais, os salários foram achatados. Estima-se que o governo bossa-nova de JK tenha aumentado a dívida externa em até 40%, fazendo contas com otimismo. Ao passar a faixa presidencial a transferiu para Jânio Quadros, O Desajustado, que levou apenas sete meses para chutar o balde, talvez depois de beber seu conteúdo, criando as condições necessárias e suficientes para mergulhar o país numa ditadura militar. João Goulart poderia ter sido apenas um velho, bom e corriqueiro senador da República e estancieiro nos pampas, porém tinha o bichinho do Executivo. Fora vice de JK e era vice de Jânio desfrutando de péssima reputação nas Forças Armadas que o tinha em conta de comunista. A economia estava desorganizada, a inflação crescente e a dívida externa iam bem obrigado.

A imensa disponibilidade de recursos internacionais a partir do final da década de 60 e no início da de 70 possibilitaram o que convenciou-se chamar de “milagre brasileiro”. O crescimento industrial dava-se em taxas elevadas e, como conseqüência, a dívida externa saiu dos US$ 4 bilhões para os US$ 12 bilhões. O dinheiro era tão farto naquela época que foi utilizado de várias e até inusitadas maneiras. O economista Delfim Neto exerceu o cargo de ministro da fazenda no período de 1967 a 1974. A primeira crise do petróleo (1973) e o endividamento do país aumentaram com as altas das taxas de juros. Em 1982 houve-se que recorrer ao Fundo Monetário Internacional com um empréstimo de US$ 3 bilhões e um déficit na balança de pagamentos chegando a US$ 9 bilhões tendo como reservas internacionais algo que sequer chegavam a US$ 4 bilhões. No final do regime militar, 1984, o panorama começava a mudar. Tivemos um saldo comercial de US$ 13 bilhões e nossa reservas aproximavam-se dos US$ 12 bilhões. Desta feita quem comandava a economia era Celso Furtado iniciando a negociação da dívida externa que alcançava a marca de US$ 45 bilhões com vencimento entre 1985 a 1991, porém somente em 1986 conseguimos um entendimento com os nossos credores privados.Mas tal acordo não duraria. No ano seguinte, 1987, o governo roeria a corda suspendendo a remessa de juros para o exterior em função do malfadado Plano Cruzado. Contudo, no final daquele ano, os entendimentos foram restabelecidos com os credores.

No ano de 1988 o mar ainda não estava para peixe. No ano anterior havíamos fechado com cerca de 370% de inflação e no ano da promulgação da Constituição Federal contabilizávamos 934%. O país crescia míseros 3% e nossas reservas internacionais encontravam-se tiquinho a mais que US$ 4 bilhões. Em 1990 a ministra da economia Zélia Cardoso de Melo implementa um novo plano de estabilidade com um choque monetário brutal que num breve período mostrou-se ineficaz. Em 1991 o Brasil consegue firmar acordo com juros relativos aos dois últimos anos e reestruturação da dívida externa a médio e longo prazo. Em 1993, já com Pedro Malan, o país adota a “iniciativa Brady” (Nicholas Brady, secretário do Tesouro americano) que já havia sido feita em outros países como o México (1989), Venezuela (1990) e Argentina (1992). O plano consistia em trocar a dívida externa por bônus que pagavam juros menores. Ocorreram ainda acordos bilaterais com cada um dos credores do Clube de Paris.

Em 2001 a dívida externa brasileira atingia a marca de US$ 231,3 bilhões e lá fomos nós fechar acordo com o famigerado FMI que, para não perder o hábito, ditou a cartilha de sempre com as metas a serem atingidas. O primeiro ano do governo Lula foi de expressivo aperto fiscal como, aliás, “nunca antes visto na história desse país”. O esforço não logrou os resultados desejados. Fechamos o ano com um superávit de US$ 66,2 bilhões e pagamos de juros US$ 145,2 bilhões aos serelepes credores e, ainda neste ano, foi acertada a revisão do acordo. Em 2005 acaba o acordo com o FMI e, no ano seguinte, com a queda do dólar o Brasil começa a aumentar suas reservas internacionais e já no final de março de 2007 elas superavam a marca de US$ 100 bilhões subindo para US$ 180 bilhões por ocasião dos festejos natalinos.

Diante deste pequeno histórico podemos concluir que, definitivamente, os sucessivos governantes brasileiros, além de adotarem medidas econômicas ineficazes, incoerentes, incompetentes e, por vezes, circenses também jamais se mostraram, de fato, responsáveis em estabelecer políticas econômicas que visassem, efetivamente, o bem-estar da sociedade. Pois, ainda hoje, a preocupação dos governantes está voltada para o atacado (interesses financeiros e manutenção de privilégios) e não para o varejo (a população, certamente os menos afortunados). A bonança do mercado internacional durante o governo Lula foi circunstância indiscutível para que hoje apresentemos a nação esta performance de nossas reservas internacionais. Considerando não ter havido empenho maior para a conquista de novos ganhos oriundos de anos tão prósperos e que já sinalizam estar, cada dia mais, comprometidos e incertos de vir a se repetirem por força da crise que esboça a economia norte americana, o credor do planeta.

Não me incluo entre os adeptos do fatalismo do “é melhor isto do que nada”. Honrar compromissos assumidos não é, deveras, nenhuma virtude e sim um dever. Portanto, não me faz favor algum este ou outro governo, em honrá-los, mesmo porque sou visceralmente depenado com sua política tributária. O que precisamos avaliar é o custo/benefício de todo este esforço imposto à nação brasileira. Não me parece atitude muito inteligente o sujeito ter uma goteira em casa, possuir o dinheiro para consertar o telhado depositado no banco e recusar-se a gastá-lo. A grosso modo não é de outra maneira que os governos se comportam. A intensa preocupação de formar superávits nos revela uma fórmula perversa de submeter às mínimas necessidades da sociedade brasileira aos interesses financeiros de credores que, ao longo dos séculos, especializaram-se no medonho esporte de espoliar e dilapidar nações como a nossa. Nações repletas de vendilhões. Para reforçar esta afirmação basta verificarmos o volume de recursos contingenciados no Orçamento Geral da União nos últimos anos e também aqueles que foram parar na corrupção, no desperdício e no desvio sem sofrerem qualquer ação eficiente que viesse a inibir tais práticas e muito menos punir seus responsáveis. Assim, creio eu, o aplauso alvoroçado não é proporcional ao espetáculo apresentado.

Os sacrifícios impostos a sociedade superam sua capacidade de suportá-los. Não será, definitivamente, com a adoção de medidas populistas que haverão de promover a distribuição de renda. Elas são inadequadas, viciadas e meramente eleitoreiras. Além, é claro, de abrir largos e profundos canais onde o dinheiro público encontra a morte por afogamento. Na minha parca concepção só consigo entender como transferência de renda o desenvolvimento racionalmente sustentável que produz empregos e geram salários dignos, o restante vem normalmente. Há que se dizer, porém, necessariamente, que tal só poderá ocorrer mediante uma profunda reorganização do Estado para que possa dispor de instrumentos adequados para operacionalizar sua máquina que, aliás, deve sempre encontrar-se perfeitamente lubrificada. As sobreposições do Estado brasileiro devem e precisam ser eliminadas sob pena de que toda e qualquer iniciativa deste porte venha a tornar-se um estrondoso desastre.

Celso Botelho

20.03.2008