sábado, 8 de dezembro de 2012

GOVERNO HERMES DA FONSECA



Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca


REVOLTA DA CHIBATA, LEI DA ANISTIA, GUERRA DO CONTESTADO, TREM-BALA, REVOLTA DE JUAZEIRO, TRANSAMAZÔNICA, VILAS OPERÁRIAS, BNH, MINHA CASA, MINHA VIDA, NOVA ORDEM MUNDIAL. TUDO A VER.


Espaço-Tempo curvo

Contrariando o pensamento de alguns o estudo da História nos permite compreender o presente e planejar o futuro. Entretanto, devemos nos cercar de muito cuidado para não cairmos na armadilha do anacronismo que se constitui num equívoco inaceitável para os historiadores. Cada período histórico reúne conceitos e ideias que lhes são próprias e inaplicáveis em outras temporalidades. Podemos aplicar os valores do presente como uma referência para a compreensão do passado comparando as diferenças conceituais e estabelecendo um diálogo entre os valores vigentes num e noutro período histórico. O caráter analógico de um estudo histórico tem a capacidade de identificar origens e estabelecer permanências, semelhanças e rupturas sociais, políticas, econômicas, culturais, religiosas, etc. Interpretar os fatos exige, além das ferramentas metodológicas adequadas, a busca e um exame minucioso das fontes interrogando-as e questionando-as. As ações humanas são produtos de seu tempo e espaço, mas suas interpretações não se acham confinadas nestes limites, posto que o historiador também seja um produto do seu tempo e espaço. Ao tratarmos de períodos históricos diferentes não significa que não tenhamos qualquer relação com ele, ao contrário.


João Cândido faleceu em 1969 aos 89 anos


Entre tantos episódios que marcaram a passagem do marechal Hermes Rodrigues da Fonseca (1855-1923) pela presidência da República a Revolta da Chibata é um dos mais marcantes. Logo nos primeiros dias de seu governo marinheiros, em sua maioria negros e mulatos alforriados ou libertos em 1888, eram punidos com chibatadas por qualquer atitude julgada pela oficialidade branca como ato de indisciplina, rebeldia ou negligência. Os marinheiros recebiam tratamento que não diferia daqueles dispensados no período escravagista. O estopim da revolta se deu por conta do marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes haver levado bebida alcoólica para uma embarcação oficial e agredido um cabo. Pelas leis da Marinha o máximo de chibatas era de 25, porém, este marinheiro recebeu 250 diante de todos a bordo do encouraçado Minas Gerais. Os marinheiros rebelados mataram a tiros e coronhadas o almirante João Batista das Neves e outros oficiais, além de outros marinheiros que não aderiram à revolta. Em 23 de novembro de 1910 o marinheiro João Cândido Felisberto divulgou uma carta exigindo o fim dos castigos corporais, a melhora na alimentação e a anistia para os revoltosos. Caso contrário, os marinheiros que somavam mais dois mil reunidos nas maiores embarcações da Marinha Brasileira ameaçavam bombardear a cidade do Rio de Janeiro, a partir da baía de Guanabara. No dia 25 de novembro de 1910 o presidente Hermes da Fonseca concedia anistia aos insubordinados através do Decreto 2.280/1910 com a condição que depusessem as armas e dois dias depois com o decreto nº 8.400, pressionado pelo ministro da Guerra, a imprensa e alguns setores da sociedade, revogou a anistia para os amotinados que foram expulsos da Marinha e outros presos, mas poucos sobreviveram. Este episódio foi tão marcante para os militares da Marinha que em 1975 os compositores Aldir Blanc e João Bosco tiveram sérios problemas com a censura do regime militar (1964-1985) com a música “O Mestre Sala dos Mares” que homenageava o marinheiro João Cândido sendo forçados a fazer alterações na letra. A Marinha não toleraria “loas (elogios) a um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou oficiais”. João Cândido faleceu aos 89 anos em 1969 como vendedor de peixe na Praça XV no Rio de Janeiro. Em 13 de maio de 2008 o Congresso Nacional, através do PL 7198/02 de autoria da ex-senadora Marina Silva (PT-AC), restabeleceu os direitos de todos os marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata. O decreto devolve aos marinheiros suas patentes permitindo que recebam na Justiça os valores a que teriam direito caso houvessem permanecido na ativa. Podemos ver claramente que não é uma prática incomum nos governos republicanos não honrar compromissos assumidos. E o fazem sem qualquer constrangimento. O uso de castigo físico na Marinha já havia sido abolido por ocasião da Proclamação da República, mas no ano seguinte fora reintroduzido. A palavra empenhada, escrita e com a forma de decreto, não foi honrada, mas, afinal, o que é que político brasileiro pode saber sobre probidade, lisura, honra, ética, moral e lealdade? Vejam alguns exemplos.

Marechal Deodoro da Fonseca destrona D. Pedro II 


Deodoro da Fonseca (1827-1892) era leal ao imperador d. Pedro II e ainda assim proclamou a Republica e como primeiro presidente da República (indireto) em 3 de novembro de 1891 dissolveu o Congresso Nacional cercando-o com tropas, prendeu líderes oposicionistas, a imprensa foi censurada e decretado o estado de sítio. Floriano Peixoto (1839-1895) descumpriu o Artigo 42 da Constituição Federal de 1891 não realizando a eleição presidencial por ocasião da renuncia de Deodoro da Fonseca. Manuel Vitorino Pereira (1853-1902), vice do presidente Prudente de Morais (1841-1902), assumindo a presidência devido ao afastamento do titular para submeter-se a uma cirurgia, transfere a sede do governo do Palácio Itamaraty para o Palácio do Catete como se fosse o titular. Getúlio Vargas (1882-1954) é um dos exemplos mais visíveis de rupturas, populismo, centralização, autoritarismo, censura, fisiologismo, nepotismo, perseguições, clientelismo, etc. como também foi marcado por transformações significativas. Deposto Vargas em 1946 assumiu José Linhares (1886-1957), por convocação das Forças Armadas, que em pouco mais de três meses nomeou um grande número de parentes que a irreverência popular bem rimou: “Os Linhares são aos milhares”. Para cumprir-se a Constituição Federal de 1946 e dar posse ao presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) foi necessária à intervenção do marechal Henrique Teixeira Lott (1894-1984) com “um golpe preventivo”. Das muitas medidas e estilo o governo do presidente Jânio Quadros (1917-1992) se movia entre o necessário, o excêntrico e o grotesco e, entre elas, a que reputo de maior gravidade foi condecorar com a Ordem do Cruzeiro do Sul um dos líderes da Revolução Cubana Che Guevara (1928-1967). Mas, afinal, o que se pode esperar de um presidente transloucado e candidato a ditador? Os presidentes do ciclo militar não foram, nem de longe, a redenção nacional como se apresentaram (a Redentora de 1964). Ao contrário, escreveram páginas das mais tenebrosas, chocantes e vergonhosas da nossa História. Não podemos negar muitos avanços, porém o preço pago pela sociedade brasileira foi muito alto. Findo o revezamento de generais na presidência o país foi entregue a quem diziam combater, isto é um belo exemplo de incompetência, ignorância, arrogância, limitação intelectual. Destituíram um presidente democraticamente eleito (João Goulart, 1919-1976) alegando, entre outras coisas, de chefiar um governo corrupto composto de comunistas que tentavam implantar tal regime no país e, durante sua permanência no poder não fizeram outra coisa senão pavimentar a estrada que os levariam ao poder. Ao supor que perseguindo, torturando e matando guerrilheiros estavam cumprindo com o seu dever de livrar o país dos comunistas foram tapeados. Uns bocós. Os guerrilheiros eram os bois de piranha enquanto a esquerda pensante ia dominando as universidades, sindicatos, entidades representativas, editoras e, principalmente a mídia (jornais, revistas, televisões, rádios). Quando o regime militar acabou sobrou esta gente que fora gentilmente preservada pelos milicos. Todos os presidentes eleitos a partir de 1989 primaram pela corrupção, improbidade, desonestidade, ineficácia, inércia, omissão, descaso, irresponsabilidade, conspirações, conchavos, casuísmos, fisiologismos, etc. não havendo esperança alguma de que isso se modifique, pelo menos com “políticos” do calibre que conhecemos.


Manifestação a favor da Anistia


Não farei a defesa do uso da violência por parte dos marinheiros envolvidos naquele episódio. Apenas considero que, naquele contexto, sem os devidos canais para o diálogo ou obstruídos pelo Estado e por tantos outros motivos a prática contumaz do castigo físico aos marujos vinham alimentando a revolta. A anistia para eles chegou com quase um século de atraso. Rebeldes que reivindicavam o fim das chibatas e uma alimentação decente, pleito mais do justo e necessário. Ao contrário da anistia concedida pela Lei 6.683 de 28.08.1979 ou, como é mais conhecida Bolsa-Ditadura que contemplou (e contempla) aqueles que pegaram e não pegaram em armas durante o regime militar. Existe um contingente apreciável de “anistiados” recebendo o “benefício” que jamais pegou em armas, jamais disse uma palavra contra a ditadura, jamais foi torturado, jamais desapareceu, jamais foi morto, jamais foi perseguido, jamais foi impedido de exercer sua atividade, jamais teve suas obras censuradas, jamais souberam a diferença entre comunismo e socialismo e jamais terão vergonha na cara. Não estou negando que tudo isto tenha acontecido, apenas que grande parte dos “anistiados” é uma fraude que se alimenta à custa do Erário. E, de mais a mais, nem mesmo aqueles que, comprovadamente, pegaram em armas não o fizeram em defesa da democracia, dos valores éticos e morais, etc. Ao contrário, desprezava tudo isso (e continuam desprezando). Gente como, por exemplo, Dilma Rousseff, Aldo Rebelo, Tarso Genro, Fernando Gabeira, Franklin Martins e outros que, se algum dia, foram democratas, morais ou éticos então eu sou o coelhinho da Páscoa.


Os revoltosos da Guerra do Contestado


Outro episódio muito conhecido ocorrido no governo de Hermes da Fonseca foi a Guerra do Contestado cuja duração estendeu-se por quatro anos e contabilizou mais de vinte mil mortos. As causas do conflito são várias. Havia uma disputa entre os estados do Paraná e Santa Catarina por uma área limítrofe rica em erva-mate e madeira (esta questão só foi resolvida em definitivo em 1917 com a homologação do Acordo de Limites). Os sertanejos ali residentes viviam em extrema miséria e isolamento. Foi necessário que o Exército Brasileiro enviasse treze expedições para acabar com o conflito. Entre os militares que combateram podemos destacar Euclides Figueiredo, 1883-1963, pai do presidente João Figueiredo, 1918-1999, último general a presidir o país no período de 1979-1985; Eurico Gaspar Dutra, 1883-1974, que viria a ser eleito presidente para o período 1946-1950 e Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra que garantiria a posse do presidente eleito Juscelino Kubitscheck em 1956. Mesmo com personagens deste calibre o Clube Militar no Rio de Janeiro denunciou casos de corrupção, desvio de fardamento, alimentos e munição, mas nada foi apurado. E a coisa não mudou cem anos depois. O Ministério Público investiga fraude na folha de pagamento da Força Aérea Brasileira (FAB) depois de descobrir que oito mil militares demitidos nos últimos dez anos permanecem ativos em cadastro interno, inclusive aqueles já falecidos. O número de militares fantasmas chega a 12% do efetivo da Força. O Ministério Público recolheu indícios suficientes para investigar a FAB por crime contra o patrimônio e estelionato. Segundo o MP o rombo pode chegar a R$ 3 bilhões, valor que representa 70% de todo investimento da FAB previsto para 2012. A presidente Dilma Rousseff foi informada da fraude e ordenou uma devassa nas contas da Aeronáutica, mas em segredo. A lambança só foi descoberta porque um grupo de ex-soldados decidiram recorrer à Justiça para tentar reingressar na Força Aérea e foram surpreendidos pelo fato de seus cadastros ainda estarem ativos, apesar de terem sido desligados. Para a presidente da República fraude, corrupção, apropriação indébita, desvio e desperdício de dinheiro público e tudo quanto é patifaria deve ser mantido em segredo para não ferir “suscetibilidades”.




Como em tantas outras situações semelhantes ocorridas ao longo de nossa História a Guerra do Contestado envolve interesses fundiários e políticos, mau planejamento, exploração humana, corrupção, favorecimentos, omissão e descaso por parte do poder público. Os “coronéis” da região (chefes políticos e grandes proprietários rurais) associados ao governo ao iniciarem as obras da estrada de ferro entre os estados de São Paulo e Rio Grande do Sul por uma empresa norte-americana (Brazil Railway Company) representada pelo empreender Percival Farquhar trouxeram para a região milhares de pessoas oriundas de outras partes do país. A Brazil Railway teve uma subvenção garantida pela União de trinta contos de réis por quilometro construído e mais o pagamento de juros de 6% ao ano sobre o total investido e mais quinze quilômetros de cada lado da ferrovia (como se dizia antigamente um autêntico negócio da China). Percival tratou de “esticar” ao máximo a ferrovia com curvas desnecessárias economizando muito não construindo aterros, pontes, túneis e viadutos. Porém, estas concessões do Estado brasileiro não surpreendem o mais incauto de seus cidadãos. Tomemos como exemplo o projeto do trem-bala ligando Rio-São Paulo. Ao contrário da estrada de ferro de Percival, nesta ferrovia será imprescindível a construção de aterros, pontes, túneis e viadutos. O traçado para o trem-bala deve ser o mais reto possível. Um dos projetos já estudados prevê que 26% do trajeto serão feitos em viadutos ou pontes e 33% em túneis. Quantos aos aterros, um trecho de 61 km, entre Lorena e Jacareí, em São Paulo, caso opte-se por aterrá-lo custará em torno de R$ 265 milhões, mas se a opção for construir um viaduto o valor subiria para R$ 4,2 bilhões. O professor da Universidade de Transportes da China Zhao Jian ao ser perguntado se fazia sentido construir um trem de alta velocidade no Brasil foi categórico: a concentração e densidade populacional são muito baixas e o custo de construção de um trem de 350 km/h é o dobro de um de 200 km/h. Portanto, além de perfeitamente dispensável, de construção dispendiosa e baixíssima rentabilidade irá favorecer uns poucos com o dinheiro do contribuinte como, aliás, é a praxe.


O mato floresce no que resta da Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande do Sul


Pessoas relacionadas com a empresa construtora da linha férrea adquiriram grande extensão de terras na região expulsando inúmeras famílias de suas terras com a finalidade de estabelecer uma empresa madeireira voltada para a exportação (Southern Brazil Lumber & Colonization Company Inc., que dispunha de 200 homens, leia-se jagunços, dispostos a pressionar quem quer que fosse). Ao final da obra os trabalhadores trazidos de várias partes do Brasil encontraram-se desempregados e desamparados tanto pela empresa quanto pelo governo. Ingredientes mais que suficientes para a eclosão de uma revolta popular. Uma liderança religiosa apregoava um novo mundo com obediência às leis de Deus, com prosperidade, justiça e terras para se cultivar. Melhor mensagem para os desvalidos não poderia ser tão oportuna. José Maria, o líder, tornou-se motivo de preocupação para os “coronéis” e para o governo que o elegeram como inimigo da República e, portanto, bode expiatório para camuflar a própria incompetência, descaso e omissão do Estado com seus cidadãos. Isto, contudo, não se revela como novidade. O capitão Matos Costa, morto na Guerra, compreendeu o que acontecia e afirmou: “A revolta do Contestado é apenas uma insurreição de sertanejos espoliados nas suas terras, nos seus direitos e na sua segurança”.


Na estação das chuvas o trânsito é impraticável na Transamazônica


É useiro e viseiro a eleição de bodes expiatórios para encobrir as mazelas governamentais. Por ocasião da abertura da Transamazônica (BR 230), rasgou-se a floresta com prejuízos ao meio-ambiente contabilizados até os dias atuais, recrutaram-se trabalhadores de várias partes do país e também até hoje se espera sua conclusão e pavimentação (na estação das chuvas o trânsito é impraticável) apesar de sua inauguração ter ocorrido há exatos quarenta anos (30.08.1972). Foram, aproximadamente, dois milhões de brasileiros e brasileiras que se sentiram chamados pelo canto da sereia do governo Médici (1969-1974) de “terras sem homens para homens sem terra” e “integrar para não entregar”. A ditadura militar era um primor de slogans ufanistas. “Brasil. Ame-o ou deixe-o”, “Ninguém segura mais este país”, “Este é um país que vai prá frente” e outras baboseiras. O sonho do ditador megalômano custou cerca de US$ 1,5 bilhão sem que fosse concluída. O planejamento e implementação do projeto foi catastrófica. A partir de 1975 o governo sumiu da região deixando a população desamparada, talvez estivesse mais preocupado com a Guerrilha do Araguaia, cuja existência negava e, ao mesmo tempo, mobilizava o Exército e a Aeronáutica para combatê-la. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso prometeu a pavimentação da Transamazônica e outras rodovias dentro de um plano ambicioso, o "Avança Brasil", que previa a aplicação de cerca de US$ 43 bilhões na região. Uma parte dos recursos ficou na promessa e a outra parte tomou rumo desconhecido. O ex-presidente Lula também prometeu pavimentar 850 quilômetros até 2011, porém às portas de 2013 e menos de 200 quilômetros receberam asfalto. Hoje a Transamazônica possui apenas um quarto do previsto, isto é, 2.500 km. No dia 19 de novembro do corrente ano cerca de mil trabalhadores fecharam a rodovia Transamazônica e a BR 163 na altura do Km 140 (Ponte Grande), município de Rurópolis, oeste do Pará. O objetivo é negociar com o governo as demandas históricas da região, sempre abandonada pelo poder público. Os agricultores exigem o asfaltamento da Transamazônica e BR 163 (Rurópolis ao Km 30), acesso à energia elétrica, regularização fundiária e revisão das unidades de conservação que sobrepõem assentamentos já existentes, além de políticas públicas nas áreas de educação, saúde e segurança. Portanto, o barril de pólvora está posto só aguardando que se acenda o pavio. As lideranças messiânicas do início da República foram substituídas pelos movimentos sociais e ONGs com a diferença que aquelas eram compreendidas como movimentos anárquicos que punham em risco a República e deveriam ser duramente reprimidas. Enquanto os movimentos sociais e ONGs de hoje são entendidos como organismos legítimos de reivindicações e representantes de segmentos excluídos, mesmo que para isso violem as leis, promovam a desordem, ocupem e depredem propriedades privadas e tudo isso com o beneplácito de sucessivos governos que, cada vez mais, interessa-se pela inversão dos valores, principal elemento para a desorientação da sociedade deformando seus critérios de julgamento e, consequentemente, favorecendo a instalação do caos coletivo.


Padre Cícero


A candidatura do marechal Hermes da Fonseca deveu-se ao impasse que se estabeleceu entre as oligarquias dos principais estados da federação, São Paulo e Minas Gerais. Para a sucessão de Nilo Peçanha (1867-1924) não se chegou a um acordo e a política do café com leite foi interrompida. São Paulo aliou-se a Bahia lançando Rui Barbosa (1849-1923) recém-chegado da Conferência de Haia e muito popular. Minas Gerais aliou-se ao Rio Grande do Sul lançando a candidatura do marechal Hermes da Fonseca, sobrinho de Deodoro da Fonseca e militar respeitado. Após dezesseis anos de governos civis os militares voltavam ao poder pelo voto direto. Hermes da Fonseca enfrentou muitos desafios durante seu conturbado governo. Porém, a política das salvações constituiu-se num fenomenal erro de avaliação, julgamento e estratégia. Visando enfraquecer as oligarquias tradicionais ao beneficiar aquelas de menor importância e que o apoiavam promovendo intervenção nos estados, destituindo governadores e nomeado pessoalmente seus substitutos com o tão conhecido discurso que pregava sanear as instituições republicanas e acabar com a corrupção. Foi um tiro no pé. A política salvacionista fomentou a instabilidade política, provocaram revoltas e rebeliões armadas. Com o objetivo de neutralizar o senador gaúcho Pinheiro Machado (1851-1915), tido e havido como o todo-poderoso da República, seu alvo estava principalmente nos estados do Norte e Nordeste onde o senador tinha grande influência. Ao decretar a intervenção no estado do Ceará os aliados do governador deposto recorreram ao Padre Cícero Romão Batista (1834-1934) que gozava de grande prestígio e popularidade entre os sertanejos que lhe atribuíam milagres sendo convencido a conclamar a população a pegar em armas e revoltarem-se. O presidente Hermes da Fonseca viu-se obrigado a restituir o cargo ao antigo governador devido a exacerbada violência dos combates e o senador Pinheiro Machado saiu fortalecido. Este episódio ficou conhecido como a Revolta de Juazeiro. O presidente Floriano Peixoto já havia se valido da intervenção nos estados para desalojar todos os aliados de seu antecessor. Em 1930, num outro contexto histórico, Getúlio Vargas recorreu ao intervencionismo para assegurar-se no poder. A maioria dos interventores nomeados por Vargas eram membros do movimento “tenentista” e tinha plena consciência de que somente estes poderiam derrubá-lo daí a estratégia de retirá-los dos quartéis transformando-os em burocratas. O governo militar instaurado em 1964 também se serviu do instrumento que ficou conhecido como governadores, prefeitos e senadores “biônicos” (alusão ao seriado muito popular na época “O Homem de Seis Milhões de Dólares” que era meio humano meio cibernético). Após 1985 as intervenções prosseguem, porém de maneira dissimulada, sob outras formas, sem enfrentamentos diretos, mas perfeitamente perceptíveis.


Vila Operária de Marechal Hermes no Rio de Janeiro atualmente


Apesar de todas as situações expostas o governo do marechal Hermes possui alguns indicadores positivos. A malha ferroviária nacional ganhou 4.500 km. A cultura do trigo revigorou-se com a criação da Estação Experimental de Trigo em Bagé. Em 1913 foi criada a Escola Brasileira de Aviação para oficiais do Exército, da Marinha e civis. Mas destacaremos aqui a construção das vilas operárias. O presidente Hermes da Fonseca foi o pioneiro na construção de conjuntos habitacionais no Brasil. A Vila Operária de Marechal Hermes previam serviços de infraestrutura, como a estação de trem inaugurada em 1913, para que fossem autossuficientes. As obras foram paralisadas após o senador Pinheiro Machado remover do cargo o diretor da comissão de construção da vila. Nos anos que se seguiram nenhum governo por elas interessou-se sendo esquecidas até o governo Vargas que retomou as obras em 1931 quando a posse da vila foi ter às mãos do Instituto de Previdência dos Funcionários Públicos da União (IPFPU), que encontrou um cenário desolador: 128 casas desocupadas e muitas inacabadas. Nessa fase foram construídas 300 casas, o Cine Lux, hoje em ruínas, e o Hospital Carlos Chagas que, de certa forma, também se encontra em ruínas como, aliás, todo sistema de saúde. Depois disso somente nos anos 1940 e 1950 o bairro recebe novos investimentos do Estado construindo quase seiscentas moradias, um ginásio, uma maternidade e o Teatro Armando Gonzaga. Nesta etapa foram construídos três conjuntos habitacionais (o Comercial, de 1948; o Três de Outubro, em 1949 e o do Ipase, de 1954). A partir do governo Vargas foi que a habitação passou a ser vista como uma questão social. Criou-se a Lei do Inquilinato e iniciou-se a construção de conjuntos habitacionais financiados através das Caixas e Institutos de Aposentadoria e Pensões e da Fundação da Casa Popular, primeiro órgão federal específico voltado para a produção da moradia popular. Mesmo frustrada a política habitacional os conjuntos construídos eram de excelente qualidade, com propostas urbanistas de vanguarda e valorização do espaço público. Como já foi dito anteriormente o governo Vargas legou ao país avanços importantes, apesar de sua truculência, aleivosia e velhacarias.


Conjunto habitacional construído pelo BNH

Conjunto habitacional construído pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. Qualquer semelhança não é pura coincidência


Em 1964 foi criado o BNH (Banco Nacional da Habitação (Lei 4.380 de 27.08.1964) estabelecendo uma fonte estável de recursos para o desenvolvimento de políticas habitacionais. Porém, não foi lá muito útil. Em 1975 o banco destinava apenas 3% de seus financiamentos a famílias com rendimento abaixo de cinco salários mínimos. A construção de conjuntos habitacionais privilegiava ganhos financeiros e, portanto, os imóveis apresentavam baixa qualidade e o financiamento para os trabalhadores de baixo poder aquisitivo se inviabilizou estimulando o aparecimento e aumento das habitações irregulares. O BNH primou por uma atuação econômica deplorável, abandono da questão social, afastamento do problema habitacional com o direcionamento para outros setores, a repetição de modelos arquitetônicos e a ocupação do espaço urbano sem bons critérios. A questão social deu lugar aos interesses econômicos comprometendo a política habitacional do BNH. Com a extinção do BNH (Decreto-Lei 2.291/1986) suas atribuições dispersaram-se entre diversos órgãos (Caixa Econômica Federal, ministérios e secretarias), os municípios passaram a planejar e executar os projetos de habitação. Ao priorizar o interesse econômico em detrimento da política habitacional o BNH pouco fez para a população de baixo poder aquisitivo onde se concentra o maior número do déficit habitacional. Em 2009 o governo federal implantou o programa Minha Casa, Minha Vida (Lei 11.977 de 07 de julho de 2009) retomando a produção em massa de moradias populares (um milhão de moradias) sem considerar os aspectos urbanísticos, arquitetônicos, regionais, etc. Mais uma vez privilegia-se o ganho financeiro e político-eleitoreiro em detrimento da solução do déficit habitacional. Na faixa de renda familiar de 0 a três salários mínimos o governo subsidia integralmente. No entanto, a maioria dos empreendimentos aprovados estão localizados em cidades e regiões onde o déficit habitacional é menor. Em contrapartida as construtoras concentram suas atenções para as periferias das grandes cidades para a faixa de três a seis salários mínimos. Isso concorre para que o programa deixe de atender o déficit habitacional para as famílias de menor poder aquisitivo. As grandes cidades, onde a demanda por moradias é maior, atualmente não possuem muitas áreas disponíveis elevando o custo das construções para as famílias de baixa renda. Não restando, pois, alternativa senão as distantes periferias ou municípios vizinhos às grandes metrópoles que, por sua vez não dispõe de infraestrutura (água, esgoto, escolas, postos de saúde, segurança, transportes, etc.) e sua construção encarecerá a área. Depois deste breve resumo pode-se concluir que, decorridos um século da iniciativa do governo Hermes da Fonseca, os problemas habitacionais no Brasil persistiram e avolumaram-se. Hoje possuímos um déficit habitacional quantitativo e qualitativo de, aproximadamente, sete milhões de moradias que abarca, principalmente, as famílias de baixa renda e em áreas urbanas (82,6%). Somente no Estado do Rio de Janeiro as famílias com renda bruta de até três salários mínimos correspondem a 89,9% do déficit habitacional. O programa Minha Casa, Minha Vida pode até ser bom nas intenções, mas de boas intenções o inferno está cheio sem, contudo, encontrar-se com a lotação esgotada. E, como dizia Henry Kissinger (1923-), secretário de Estado dos Estados Unidos, “a História não falará de nossas intenções e sim de nossas ações”. A produção de moradias para as famílias de baixa renda é insuficiente ao longo da História e os motivos são os mais diversos como o considerável crescimento demográfico, migração para centros urbanos incapazes de absorver tamanho contingente, achatamentos salariais, instabilidade econômica, política, etc. Os valores dos subsídios concedidos, os recursos próprios que as famílias têm que desembolsar para dar como entrada nos financiamentos, os altos custos de produção, a baixa renda bruta familiar e o valor do aluguel pago pelos que não têm casa própria são fatores que dificultam a produção e a aquisição de moradias por parte das famílias que têm renda bruta até três salários mínimos, uma vez que os valores máximos calculados para as prestações quase sempre são insuficientes para se adquirir ou construir o imóvel pretendido no valor e prazos máximos estabelecidos pelo programa. Portanto, “o sonho da casa própria” está tão distante quanto estava no inicio do século com a iniciativa pioneira do presidente Hermes da Fonseca.




Nem mesmo as lições do passado servem para os sucessivos governos que, deliberadamente, não desenvolvem políticas públicas voltadas para atender as demandas dos cidadãos. Existe uma cidade onde foi construído um conjunto do programa Minha Casa, Minha Vida para a faixa de três a seis salários-mínimos num morro que, segundo consta, está condenado pelos geólogos como impróprio para ergue-se qualquer estrutura. Isso nos remete ao artigo anterior que tratamos da questão sobre o tamanho do Estado e, forçosamente, de sua opção entre privatizar e estatizar concluindo que qualquer solução não reside nestes binômios e sim numa análise criteriosa centrada na relação custo/benefício. As decisões que resultarem desta análise somente poderão prosperar dentro de um ambiente onde a lisura no trato da coisa pública esteja presente. Supor que tal condição seja atendida com a atual classe política brasileira vai além da ingenuidade, é burrice Contudo não devemos nos acomodar porque isto só os favorece. Enquanto não exigirmos do Estado uma mudança em suas posturas ficaremos à mercê de governantes deploráveis, corruptos, levianos, incompetentes, inertes e omissos como os que já tivemos e ainda temos aliados a uma elite gananciosa, igualmente corrupta e completamente ignorante. Nossa primeira exigência deve ser a adoção de um modelo educacional que possa preparar as próximas gerações para compreenderem que existe um mundo em constante transformação e que exige conhecimentos sólidos para que se possa responder aos seus desafios, necessidades e aspirações e que se estende muito além de seus próprios umbigos. O sistema educacional brasileiro, desde Marques de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo, 1699-1782) tem se revelado um desastre de proporções bíblicas. A mercantilização do ensino tem legado hordas de analfabetos funcionais que, na falta de coisa melhor, acabam por ocupar cargos na administração pública e arvoram-se de especialistas a ditar regras, engendrar mecanismos ineficazes e criar instrumentos idiotas, esdrúxulos e propositadamente confusos erguendo sólidos obstáculos que impedem o crescimento intelectual de nossas crianças e jovens destruindo milhares de inteligências. Um povo sem educação de qualidade está fadado ao fracasso, a subserviência e a mais completa imbecialização. Mas não se iludam, o objetivo é exatamente este: tornar o país vulnerável e, portanto, receptivo as mudanças que a nova ordem mundial vem implementando por todo o mundo e que não são nem um pouco alvissareiras.



CELSO BOTELHO

08.12.2012