No próximo dia 25 de agosto completará cinquenta anos da renuncia do presidente Jânio Quadros (1917-1992) e é oportuno que retomemos o fato para comentá-lo. Centenas de textos já foram produzidos e analisados sob as mais diferentes perspectivas e contribuem para que possamos entender esta marcante passagem na História republicana de nosso país. Jânio foi um fenômeno eleitoral. Em poucos anos ascendeu da posição de vereador à presidência da República. Figura muito controvertida, polêmica, intempestiva, oblíqua. Despertou muitos adeptos, simpatizantes e defensores como também adversários ferrenhos, inimigos pessoais e críticos ácidos. Examinando sua trajetória não é difícil perceber sua inclinação ao autoritarismo, centralização e ambição por um poder amplo, irrestrito e inquestionável. Para confirmar isto basta recorrermos as suas atitudes durante seu curto mandato. As “forças terríveis” as quais se referiu em sua carta-renúncia, de um modo geral e sob diferentes formas, sempre existiram na República brasileira. Jânio Quadros tentou um golpe de Estado dentro de um contexto que lhe era extremamente desfavorável politicamente, economicamente e militarmente. Seus equívocos, a avaliação sobre todo o panorama nacional e a estratégia pensada não tinham qualquer possibilidade de vir a ser bem sucedido. Jânio imaginou-se reconduzido ao cargo nos braços do povo e com poderes absolutos e, ao invés disso, sua renúncia foi aceita pelo Congresso Nacional que declarou a vacância na presidência da República abrindo uma crise institucional sem precedentes e o povo manteve-se indiferente. Os militares se negavam a dar posse ao vice-presidente João Goulart (1919-1976) por suas notórias ligações com a esquerda (estávamos no auge da Guerra Fria) sendo a questão resolvida pela implantação de um regime parlamentarista capenga que não durou muito, mas isso é outra história.
Jânio jamais identificou que “forças terríveis” o impeliram àquele ato extremo deixando esta tarefa para os historiadores que, como era de se esperar, não partilham do mesmo entendimento como, aliás, é natural e salutar. Sua campanha pautou-se no combate à corrupção. Depois do regime militar (1964-1985) todos os candidatos nas campanhas presidenciais a elegeram como principal meta a ser perseguida. No entanto, constatamos que nesta guerra estamos perdendo todas as batalhas de maneira escandalosa alargando dia a após dia sua área de influência, quer seja, todas elas. No Brasil existe este paradoxo: quanto mais se cria mecanismos voltados para combater a corrupção mais ela se fortalece e o motivo disso, sem dúvida, está no sólido edifício do Instituto da Impunidade. Jânio adotou medidas que visavam sanear a administração pública federal o que, por sinal, é uma das obrigações do agente público. Uma característica de sua passagem pelo Palácio do Planalto - foi o primeiro presidente empossado em Brasília, que cheirava a tinta – foram os famosos bilhetinhos que endereçava aos seus colaboradores. Nos sete meses que ocupou a presidência Jânio produziu cerca de quinhentos bilhetinhos, muito combatidos, porém sempre temidos e respeitados. Na realidade os bilhetinhos não eram uma criação de Jânio Quadros. Conta-se que Churchill (Winston Leonard Spencer-Churchill, 1874-1965) fora a inspiração para o ex-presidente, outros alegam que se inspirou em Getúlio Vargas (1882-1954) que assim comunicava-se com seu antigo Chefe da Casa Civil Lourival Fontes (1899-1967). Também há quem afirme que a inspiração veio de Abrahão Lincoln (1809-1865) que assim procedia para driblar a burocracia. E, por último, temos a informação de que o capitão-general Martins Lopes Lobo de Saldanha quando era governador da Capitania de São Paulo (1775-1782) utilizava-se de ordens escritas sucintas e enérgicas a fim de obter providências imediatas. Seja quem for que o tenha inspirado o método ficou famoso e ainda não repetido.
Desejoso de moralizar e sanear a administração pública demitiu cerca de 10.000 funcionários nomeados depois do dia primeiro de setembro de 1960. Dilma Rousseff não exonerou os milhares que seu antecessor nomeou a torto e a direito durante oito anos. São tantos que caso a presidente resolva exonerá-los certamente ficará com a mão dolorida. Ao mesmo tempo, Jânio declarou guerra ao contrabando, determinando, entre outras medidas, a demissão de todos os fiscais da alfândega. Hoje o contrabando é realizado legalmente com a importação de produtos que viveríamos perfeitamente sem eles criando empregos e prosperidade no exterior e a exportação de produtos que o mundo teria dificuldades em viver sem eles. Através da Resolução nº 204 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), acabou com subsídios ao câmbio que beneficiavam determinados grupos econômicos importadores à custa do erário público - inclusive os grandes jornais, que importavam papel de imprensa a um dólar subsidiado em cerca de 80% - que se irritaram com a perda do privilégio. Mas a política cambial do governo federal hoje mantém sua disposição para privilegiar os importadores. Um levantamento da Abimaq (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos) mostra que o consumo de produtos importados de alta e média tecnologia subiu 76%, entre 2004 e 2010. Em contrapartida, a produção nacional cresceu só 40% no período. A diferença, de acordo com o estudo, foi suprida pelas importações, que aumentaram 177% nos últimos seis anos. Portanto, a disposição do presidente Jânio Quadros só fez robustecer as “forças terríveis”. A Instrução 204 desvalorizava o cruzeiro em 100%. Tal medida provocou uma reação negativa das camadas populares, as quais assistiram uma brutal elevação dos preços das mercadorias. Em 1986 com o fracasso do Plano Cruzado I o governo Sarney (1985-1990), logo após as eleições daquele ano na qual o PMDB conquistou 22 governos estaduais, adotou o Plano Cruzado II desorganizando ainda mais a economia nacional então houve uma manifestação em Brasília que ficou conhecida como o “badernaço” onde se registraram saques, depredações e incêndios. Este governo não apenas desvalorizou a moeda brasileira como também a transformou em simples papel colorido em nossas carteiras. Mais adiante, em 1999, no governo de FHC (1995-2002) houve a desvalorização do Real, ocasião na qual a carga tributária cresceu entre 1999 e 2002, passando da faixa de 25% para 37%. Admitimos que esta desvalorização trouxesse também aspectos positivos para o país, mas no conjunto da obra a sociedade saiu perdendo, notadamente sua parte mais carente. As medidas de Jânio, no entanto, foram do pleno agrado do FMI (Fundo Monetário Internacional), que deu sinal verde para a renegociação da dívida externa brasileira. O presidente instalou uma avara política de gastos públicos, enxugando onde fosse possível a máquina governamental. Isso faz lembrar o intrépido presidente Collor (1990-1992) apelidado de “caçador de marajás” que, numa penada, decidiu desmantelar toda gigantesca estrutura do paquidérmico Estado brasileiro extinguindo ministérios, estatais, autarquias; abrindo a temporada de privatizações; colocando imóveis, automóveis, aviões, etc. à venda, mas tudo não passou de um espetáculo pirotécnico. Jânio abriu centenas e centenas de inquéritos e sindicâncias em um combate aberto à corrupção e ao desregramento na administração pública. De 1985 até hoje são cerca de duas centenas de escândalos conhecidos envolvendo os mais diversos crimes (desde o inaceitável homicídio até o trafico de influência ou o pagamento de uma simples tapioca de R$ 8,30 com o famigerado Cartão Corporativo efetuado por um ministro de Estado). Jânio Quadros ainda enviou ao Congresso os projetos de lei antitruste, a lei de limitação e regulamentação da remessa de lucros e royalties, e a pioneira proposta de lei de reforma agrária (esta um verdadeiro calcanhar de Aquiles para qualquer governo). Naturalmente nenhum desses projetos jamais foi posto em votação pelo Congresso - hostil ao seu governo - que os engavetou, uma vez que Jânio se recusava a contribuir com o que chamava de “espórtulas constrangedoras” que os congressistas estavam (e ainda estão) acostumados a exigir para aprovar leis do interesse da nação. A presidente Dilma Rousseff, desde que assumiu, não conta com um Congresso Nacional hostil e sim profundamente carcomido, mercenário, fisiologista e corporativista que a ameaça de não aprovarem as matérias do interesse do governo caso suas solicitações não sejam atendidas como as vagas no segundo e terceiro escalão e a liberação das verbas para as emendas parlamentares, sendo que estas últimas a presidente já anunciou que até o fim deste ano irá liberar algo em torno de R$ 2,5 bilhões para aplacar o apetite dos parlamentares. Devido à pressão exercida pelos EUA e da UDN (União Democrática Nacional) partido que o elegera e com o qual rompera, os atritos tornaram-se frequentes entre o presidente e o Congresso Nacional. Dilma não sofre pressão dos Estados Unidos em proporção sequer semelhante (a pressão norte-americana ainda é exercida) e quanto ter um partido de oposição que possa lhe atrapalhar a vida seu antecessor fez a proeza de desarticular toda e qualquer oposição (ou o PSDB, DEM e penduricalhos se opõem a que e a quem?). No dia anterior a sua renuncia o governador do então Estado da Guanabara Carlos Lacerda (1914-1977) ocupou horário na televisão denunciando que Jânio articulava um golpe de Estado. E articulava mesmo como veremos a seguir.
Reproduzo a confissão de Jânio Quadros no dia 25 de agosto de 1991, trinta anos após sua renúncia à presidência da República, feita ao seu neto Jânio Quadros Neto num quarto do Hospital Israelita Albert Einstein, juntamente com Eduardo Lobo Botelho Gualazzi, organizaram o livro ‘’Jânio Quadros: Memorial à Historia do Brasil’’ (Editora Rideel, 1995, 340 páginas)
‘’Quando assumi a presidência, eu não sabia da verdadeira situação político-econômica do País. A minha renúncia era para ter sido uma articulação: nunca imaginei que ela seria de fato aceita e executada. Renunciei à minha candidatura à presidência, em 1960. A renúncia não foi aceita. Voltei com mais fôlego e força. Meu ato de 25 de agosto de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo, uma tentativa de governabilidade. Também foi o maior fracasso político da história republicana do país, o maior erro que cometi (...). Tudo foi muito bem planejado e organizado. Eu mandei João Goulart (vice-presidente) em missão oficial à China, no lugar mais longe possível. Assim, ele não estaria no Brasil para assumir ou fazer articulações políticas. Escrevi a carta da renúncia no dia 19 de agosto e entreguei ao ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, no dia 22. Eu acreditava que não haveria ninguém para assumir a presidência. Pensei que os militares, os governadores e, principalmente, o povo nunca aceitariam a minha renúncia e exigiriam que eu ficasse no poder. Jango era, na época, semelhante a Lula: completamente inaceitável para a elite. Achei que era impossível que ele assumisse, porque todos iriam implorar para que eu ficasse (...). Renunciei no dia do soldado porque quis sensibilizar os militares e conseguir o apoio das Forças Armadas. Era para ter criado certo clima político. Imaginei que, em primeiro lugar, o povo iria às ruas, seguido pelos militares. Os dois me chamariam de volta. Fiquei com a faixa presidencial até o dia 26. Achei que voltaria de Santos para Brasília na glória. Ao renunciar, pedi um voto de confiança à minha permanência no poder. Isso é feito frequentemente pelos primeiros-ministros na Inglaterra. Fui reprovado. O País pagou um preço muito alto. Deu tudo errado’’.
Como vimos as “forças terríveis” é uma constante o que pode abrandá-las ou recrudescê-las são as atitudes presidenciais. No início da República os presidentes eram oriundos das forças oligárquicas que dominavam o país e estas eram suas “forças terríveis”. Nas últimas décadas os presidentes têm suas “forças terríveis” nos banqueiros e empresários. Mas politicamente essas forças permanecem as mesmas e, com certeza, cada vez piores e um relacionamento baseado no atendimento de suas reivindicações pelo Executivo que irá determinar o grau de “governabilidade” que este ou aquele presidente terá. De fato, a renúncia de Jânio Quadros teve um preço elevado para toda a sociedade brasileira abastecendo o arsenal de razões que os conspiradores vinham montando desde 1954 por ocasião da morte de Getúlio Vargas para concretizarem um golpe de Estado seguido por um regime militar que destroçou o país e os brasileiros inserindo em nossa História mais um período de dor, miséria e sofrimento. Sempre as “forças terríveis” estarão atentas na defesa de seus interesses lançando ao limbo tudo e todos que lhe possam estorvar. As “forças terríveis” não reconhecem valores democráticos, direitos adquiridos, justiça social ou direitos humanos. Jânio não se deu conta de que o sistema não iria permitir que alterasse suas regras estabelecendo comportamentos e padrões que interferissem negativamente em sua estrutura secularmente edificada. Dizer isso não significa, pois, que compartilhamos das decisões e dos devaneios do ex-presidente, apenas apontamos para uma realidade que se mantém até os dias atuais numa similaridade irrefutável como vimos acima. Sempre, sempre e sempre as “forças terríveis” estarão a nos assombrar?
CELSO BOTELHO
08.08.2011