O Pensador de Rodin (François-Auguste-René Rodin, 1840-1917)
É lamentável o modo como tratamos a História e a Memória nacional. As iniciativas para a preservação dos acervos históricos são insuficientes, incompletas e, não raras às vezes, levadas a termo de maneira inadequada, equivocada e leviana. A memória nacional não recebe a atenção que lhe é devida e, sistematicamente, é manipulada, distorcida, omitida e ignorada. Marc Bloch definiu magistralmente a História quando disse que é a ciência dos homens no tempo ensinando-nos o “método regressivo”, ou seja, a compreensão do passado pelo presente e vice-versa (Apologia da História ou o Ofício do Historiador, Marc Bloch, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002). Portanto, para compreendermos o presente é necessário investigarmos e compreendermos o passado para planejarmos o futuro. A História do Brasil sofre, desde sempre, uma série de sortilégios que acabam por se cristalizarem como verdades absolutas e irrefutáveis e, sabemos, na História não existem verdades, nem absolutas e muito menos irrefutáveis. O estudo da História permite que nos tornemos cidadãos reflexivos, críticos, atuantes e conscientes de nossas responsabilidades.
Biblioteca de Alexandria na Antiguidade
Biblioteca de Alexandria inaugurada em 2002
O descaso e má conservação pelos patrimônios históricos e culturais no Brasil são, com toda certeza, caso de polícia. Sejam eles edifícios, monumentos, reservas ambientais, livros, documentos escritos ou iconográficos, etc. É lamentável termos que admitir que muito da História do Brasil perdeu-se devido a negligência, omissão e decisão de muitos brasileiros. A história e a memória brasileira sobrevivem a duras penas. A necessidade de preservar documentos remonta aos séculos V e IV a.C. A mais antiga biblioteca de que se tem notícia foi formada no século VII a.C. por Assurbanipal (669 - 627 a.C.), rei da Assíria, em Nínive. Apesar de serem um povo guerreiro davam muita importância à preservação de arquivos, relatórios e documentos que eram gravados em placas de argila. Devemos lembrar que nas civilizações da Antiguidade a leitura era um privilégio praticamente exclusivo de reis, nobres, conselheiros, escribas e sacerdotes. A Biblioteca Real de Alexandria, no Egito, foi uma das maiores bibliotecas do Mundo Antigo existindo até a Idade Média quando foi destruída por incêndio, este acontecimento divide os historiadores, mas isso é outra história. Edificada por Alexandre, O Grande (356 a.C.-323 a.C.), era o centro de cultura entre os séculos IV e III a.C. reunia mais de 500.000 rolos de papiros e pergaminhos. Na Idade Média as bibliotecas refluem para os mosteiros, conventos e palácios e destina-se a uma minoria. No século XIII com o surgimento das universidades, como de Sorbonne, França, grandes bibliotecas universitárias são formadas, assim os centros monásticos deixam de ser os únicos centros da vida intelectual. Muitos textos científicos e matemáticos foram copiados por muçulmanos e cristãos entre os séculos VIII e IX. Do século XIV ao XVI surgem as primeiras bibliotecas senhoriais e reais e representam a riqueza, o poder e o prestigio. Neste período também se desenvolve a noção de que as bibliotecas devam ser locais de estudo, reflexão e desenvolvimento de atividades intelectuais. As bibliotecas reais só eram acessíveis aos sábios e tal situação somente inverte-se a partir do século XVII tornando-se públicas. No entanto, este processo começou no século XIV com a difusão do papel e a invenção da tipografia. Em 1731 Benjamim Franklin (1706-1790) funda a primeira biblioteca de empréstimo, destinada aos membros que pagavam quotas (EUA). O aparecimento de livros, instituições educacionais e bibliotecas no Brasil ocorrem somente a partir de 1549 com o Governo Geral em Salvador (BA). Os livros no Brasil Colonial eram escassos, devido à proibição de Portugal de se instalar uma tipografia no país e da censura imposta pela Inquisição Católica. Em 1773, com a extinção da Companhia de Jesus, a expulsão dos jesuítas do Brasil pelo Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo, 1699-1782) as bibliotecas jesuítas tiveram seus acervos amontoados em lugares impróprios durante anos e em 1851 pouca coisa poderia se aproveitar. Somente com o Decreto 25 de 30.11.1937 (Lei do Tombamento) que a preservação do patrimônio histórico e cultural recebeu a atenção do Estado. A Constituição Federal de 1988 consolidou sua importância no Art. 216 parágrafo primeiro (“o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”). A legislação que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados encontra-se na Lei 8.159 de 08 de janeiro de 1991 e em seu Artigo 1º Capítulo 1º determina que “é dever do poder público a gestão documental e a proteção especial a documentos de arquivo, como instrumento de apoio à administração, à cultura e ao desenvolvimento científico e como elemento de prova e informação”. Apesar da legislação os arquivos brasileiros encontram-se em situação lastimável. Carecem de programas de gestão documental e políticas de recolhimento de documentos; incontáveis documentos acumulados e sem identificação, controle e arranjo; precárias condições de infraestrutura e escassos recursos financeiros destinados aos arquivos; falta de espaço físico e condições inadequadas para a preservação e conservação dos acervos; os recursos humanos e de pessoal especializado são escassos e, pasmem, apesar da vivermos na Era da Informática pouco é utilizada. A biblioteca é, por definição, uma instituição social de muita complexidade e de uma importância ímpar no sistema de comunicação humano, pois, afinal, é sua responsabilidade a preservação e transmissão da cultura. Caso fossemos apresentar todos os exemplos de descaso, omissão, ingerência, inércia e incompetência ao lidar com nosso patrimônio histórico e cultural ao longo do tempo este artigo transformar-se-ia em um livro com incontáveis páginas.
Tapume colocado por imposição da Defesa Civil na Biblioteca Nacional, RJ
O descaso e a má conservação é flagrante
Biblioteca Nacional, situada na Cinelândia, Rio de Janeiro, é o cartão de visitas do descaso e má conservação. Pode-se dizer que seus primórdios encontram-se no terremoto que sacudiu Lisboa, Portugal, em 1755 e provocou vários incêndios entre eles o da Real Biblioteca destruindo considerável parte de seu acervo. D. José I (1714-1777) e o Marques de Pombal lançaram-se na empreitada de reunir o que havia restado organizando no Palácio da Ajuda uma nova biblioteca. Em 1807 contava com cerca de sessenta mil peças, entre livros, manuscritos, incunábulos (livro impresso nos primeiros tempos da imprensa com tipos móveis entre 1450 e 1500. Eram livros que imitavam o manuscrito), gravuras, mapas, moedas e medalhas. Este acervo foi trazido ao Brasil após a vinda da família real em 1808, uma parte em 1810 e o restante em 1811. Assim que chegou ao Brasil o primeiro lote do acervo teve como destino o andar superior do Hospital Terceira do Carmo (alvará de 27.07.1810) na atual Rua do Carmo, no centro do Rio de Janeiro. Como as instalações não eram adequadas em 29.10.1810 editou decreto que marca à fundação da Biblioteca Nacional no lugar que havia as catacumbas dos religiosos do Carmo. Seu acervo foi sendo ampliado com o passar dos anos com aquisições e doações e, principalmente, pelas “propinas” tornadas obrigatórias pelo alvará de 12 de setembro de 1805 para todo material impresso nas tipografias de Portugal e na Imprensa Régia no Rio de Janeiro. Este alvará culminou no Decreto 1825/20.12. 1907 (Decreto de Depósito Legal), ainda em vigor. Após a Independência, em 1822, passou a ser propriedade do Império do Brasil, sua compra consta da Convenção Adicional ao Tratado de Amizade e Aliança firmado entre Brasil e Portugal, em 29 de agosto de 1825. Pelos bens deixados no Brasil a Família Real foi indenizada em dois milhões de libras esterlinas, desse valor, oitocentos contos de réis destinavam-se ao pagamento da Real Biblioteca, que passou a se chamar Biblioteca Imperial e Pública da Corte. Em 1858, a Biblioteca foi transferida para a rua do Passeio, número 60, no Largo da Lapa, e instalada no prédio que tinha por finalidade abrigar de forma melhor o seu acervo. Seu atual prédio teve sua pedra fundamental lançada em 15 de agosto de 1905, durante o governo de Rodrigues Alves (1848-1919). A inauguração se realizou em 29 de outubro de 1910, durante o governo Nilo Peçanha (1824-1919). O edifício da Biblioteca Nacional possui estilo eclético e mescla elementos neoclássicos com art-nouveau, cujo projeto é assinado pelo notável engenheiro Francisco Marcelino de Sousa Aguiar (1855-1935) que, entre outras obras, destacamos o Palácio Monroe (originariamente Saint Louis) projetado para Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Saint Louis nos Estados Unidos em 1904. Souza Aguiar o concebeu para ser montado nesta exposição e remontado no Rio de Janeiro em 1906 (quando recebeu o nome de Palácio Monroe em homenagem ao presidente norte-americano James Monroe, 1758-1831, criador do Pan Americanismo). Em 1974 o traçado do metrô do Rio de Janeiro foi desviado para não afetar as fundações do Palácio Monroe sendo tombado pelo governo do estado. Em 1976 foi demolido sob o argumento de que o edifício prejudicava a visão ao Monumento dos Mortos da Segunda Guerra Mundial. O presidente Ernesto Geisel (1907-1996) não concedeu o decreto federal de tombamento. Eis um dos mais gritantes exemplos de descaso com a história e memória.
Eis mais descaso e má conservação na Biblioteca Nacional
Ao visitar a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro experimenta-se um misto de revolta, tristeza e profunda irritação ao constatar-se seu completo abandono. São rachaduras nas paredes e pisos, infiltrações, pinturas descascadas, fachada deteriorada, instalações elétricas precárias (gambiarras, benjamins), em setembro de 2012 o Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro vistoriou e notificou a Biblioteca Nacional por irregularidades no sistema de incêndio e pânico apontando sério risco de incêndio no prédio principal e do anexo, hidrantes obstruídos, porta bloqueadas, etc. Em 2012 houve três vazamentos de água e apenas num deles foram destruídos mais de dois mil periódicos e quando a chuva é mais intensa os livros que estão no último andar são atingidos. O ar condicionado não funciona e em abril do ano passado um vazamento alagou o prédio danificando centenas de exemplares de jornais. A temperatura ideal para a conservação do acervo é de 22ºC, porém livros, jornais e revistas estão em caixas de papelão, nos corredores da biblioteca. Nos armazéns de obras gerais e raras a temperatura chega a 50Cº. A falta de ar condicionado propicia a proliferação de cupins e traças. O prédio foi construído há mais de 100 anos com uma capacidade de abrigar 800 mil volumes e hoje abrigam mais de nove milhões de peças. Isto compromete o edifício centenário. A Biblioteca Nacional guarda o maior acervo do país e está entre as dez maiores do mundo de acordo com a UNESCO. A última reforma foi executada há mais de trinta anos quando fizeram uma revisão das instalações elétricas e hidráulicas, isso demonstra de forma cabal o desprezo pela cultura que nossos governantes não se cansam de demonstrar. Em dezembro do ano passado e janeiro deste ano os servidores da instituição protestaram nas escadarias do edifício fantasiados de diabo e balançando leques numa alusão ao ambiente de trabalho e pesquisa. Na ocasião exibiram também faixas que criticavam as condições de segurança do prédio (por determinação da Defesa Civil foram colocados tapumes no exterior do prédio onde o reboco estava caindo) e solicitava a intervenção da ministra da Cultura (sic) Marta Suplicy. Solicitar alguma coisa dessa gente não é eficiente e nem apropriado. O que se deve fazer é exigir, xingar e ameaçar e, caso não resolva, partir-se para as vias de fato. De acordo com a bibliotecária Suzana Martins, que trabalha com acervos raros, na Real Biblioteca de d. João VI, "há obras dos séculos XVII e XVIII definitivamente destruídas por conta da falta de manutenção e de uma política de conservação. É uma grande ameaça à nossa cultura." Em seu acervo a BN possui obras do século XI ( o Minúsculo 2437, manuscrito minúsculo grego dos Evangelhos. Contém 220 fólios, livro numerado por folhas, dos quatro Evangelhos, 20 x 15 cm, com exceção de Mateus 1,1-17 e foi escrito em uma coluna por página, em 24 linhas por página. É o mais antigo manuscrito do Novo Testamento da América Latina). Segundo consta, o ministério da Cultura irá destinar cerca de R$ 70 milhões para obras emergenciais na Biblioteca Nacional. O que se pode traduzir que ninguém está interessado em resolver coisa alguma, apenas “dar um jeitinho”. Os problemas são graves e, portanto, não pedem paliativos e sim soluções definitivas. O presidente da Fundação Biblioteca Nacional Galeno Amorim simplesmente manda algum subalterno dizer que “muito tem sido feito”, porém não explica o que exatamente está fazendo muito, mas podemos bem imaginar o que seja. Este cidadão foi candidato a deputado estadual pelo PT de São Paulo, mas não foi eleito. No entanto, foi recompensado. Entre suas propostas estava a de abolir o serviço militar obrigatório substituindo por prestação de serviços à comunidade; distribuição de “vale-cultura” para os alunos da rede estadual; regulamentar e reconhecer o papel das “lan houses” e outras baboseiras. Foi também secretário de Cultura de Ribeirão Preto na administração Antonio Palocci, nosso velho e conhecido multiplicador de dinheiro. Foi nomeado em 2004 para a Biblioteca Nacional como coordenador geral de Livro e Leitura da Biblioteca Nacional. Para fazer jus ao nome Galeno Amorim deveria realizar um diagnóstico impecável sobre as condições da entidade que preside e pleitear suculentos recursos para retirar a Biblioteca Nacional da UTI.
Bolsa-Remição, mais uma realização do governo petista
A solução para a Biblioteca Nacional está na construção o mais urgente possível de um novo e moderno edifício que possa acomodar todo seu acervo dentro das condições adequadas; contratar profissionais especializados; alocar os recursos necessários à sua manutenção, aquisições, projetos e atividades correlatas à instituição, etc. Porém, tais medidas se mostrarão inúteis caso a mentalidade de nossos governantes permaneçam estacionárias, congeladas e dispostas a mutilar e fazer desaparecer o patrimônio histórico e cultural da nação brasileira. Um povo sem memória caminha célere e inexoravelmente para uma completa e irreversível ruína. Mas enquanto a Biblioteca Nacional está se liquefazendo o governo petista publicou Diário Oficial da União a Portaria 276 de 20.06.2012 do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) que determina que quanto mais livros um condenado ler por ano, menor será sua pena. A medida vale apenas para os detidos nas quatro penitenciárias federais. Cada obra literária terá que ser lida no prazo de 21 a 30 dias. Por cada livro lido pode ser feita a remição de quatro dias. Ao final de um ano, o preso poderá ter feito a leitura de 12 livros e, assim, descontado, no máximo, 48 dias na sua pena. Ao final da leitura, cada preso terá que fazer uma resenha, que será submetida a uma comissão, coordenada por um pedagogo. Qual será o valor de uma resenha dentro dos presídios? Mais uma benesse para os criminosos. Ficou, pois, criada a Bolsa-Remição. Talvez o governo petista deseje formar uma geração de bandidos ilustrados e que venham a cometer seus crimes com mais elegância. Nada contra os presidiários terem acesso à leitura, pelo contrário. Mas este acesso não pode redundar em diminuição da pena. E, de mais a mais, existem outras prioridades no sistema carcerário brasileiro que, segundo o ministro (sic) da Justiça José Eduardo Cardozo, prefere morrer a nele se internado.
Biblioteca Nacional da China (Exterior)
Biblioteca Nacional da China (Interior)
CELSO BOTELHO
25.01.2013