segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

SAUDADES DA "REDENTORA" DE 1964?



O percurso não era longo, porém não me contive em puxar conversa com o taxista. Naturalmente a primeira coisa que me ocorreu foi falar sobre o tempo. Os dias eram ensolarados e de chuvas escassas e ralas durante a madrugada. Havendo retornado do Rio de Janeiro relatei que lá fazia um calor digno de qualquer deserto. Daí, não me lembro quem falou primeiro, fomos para a retumbante violência urbana ali instalada. Ai é que a coisa desandou. O homem empenhou-se numa defesa acirrada pelo retorno ao regime militar (1964-1985) como solução definitiva para acabar com a violência urbana e rural neste país. Como outros com esta mesma ideia de jumento retardado acrescentou convicto: “é só você viver sua vidinha e deixar a política de lado”. Neste momento, talvez mesmo sem o saber, revogava uma sentença aristotélica (Aristóteles, 384 a.C. – 322 a.C.) de que o homem é um animal político, quer queira quer não queira. Estava diante de uma pessoa eficazmente doutrinada pelo regime de exceção; um porco de engorda, não no sentido pejorativo e sim no sentido literal. Ao pagar a corrida, pronto para ir-se, sentenciou: “havia mais respeito”. Antes que pudesse retrucar o veículo saiu deixando-me hirto na calçada.


Contudo, após entrar em casa e sentar diante do teclado lembrei-me do ocorrido e me pus a meditar. Examinando com mais atenção pude perceber que aquele homem não se importava nem um pouco com o regime ou com o sistema político que vigorava como, aliás, inúmeras outras pessoas de bem. Seu foco estava direcionado à segurança pessoal no exercício de sua atividade (no seu caso, por exemplo, é repleta de riscos) e de sua família. Para ele o fato de um general ou um analfabeto funcional ocupar a presidência da República é irrelevante. Sua apatia política tem forte origem na insegurança cada vez maior e não nos pressupostos ideológicos oferecidos por esta ou aquela doutrina. É óbvio que outros fatores determinam tal disposição e, entre eles, podemos referir-nos a corrupção escrachada que campeia em todas as esferas da administração pública e nos três poderes. Certamente mais do que a própria corrupção (considerando ser um fenômeno mundial e milenar) o fato de ela manter-se impune contribui vigorosamente para o descrédito nas instituições que, complacentes e coniventes, se liquefazem um pouco mais a cada dia.


Nosso personagem naturalmente não deve ignorar as atrocidades cometidas por ambos os lados durante aquele nefasto período. No entanto, desespera-se diante da realidade existente na vigência de um Estado Democrático de Direito (capenga, mas democrático). No regime de exceção as garantias constitucionais, a observância aos direitos humanos e sua liberdade de expressão foram surrupiadas brutalmente e um número muito grande de pessoas talvez nem se tenham dado conta por ignorância, desinteresse ou, mais amiúde, pelo forte apelo ao instinto de sobrevivência arraigado no espírito humano e superior a quaisquer outras forças e, neste último caso, tornaram-se co-responsáveis por esta situação. Como já disse em outra oportunidade podemos dizer que atravessamos uma ditadura na democracia. Uma ditadura que não se caracteriza pela truculência e sim pela indução através dos mais variados mecanismos. Nossa democracia – definitivamente – está aquém de ser pelo povo e para o povo. Os seus métodos e suas práticas não se assemelham com aquelas levadas a termo por qualquer ditadura, porém, os fins são rigorosamente os mesmos: manter o status quo e controlar o Estado com firmeza garantindo a manutenção de privilégios. A propaganda, em qualquer regime, é um meio imprescindível para a sua continuidade. O paternalismo e populismo são instrumentos milenares e de extrema eficácia, sejam eles declarados ou escamoteados, num Estado de Exceção ou Democrático. As pessoas foram viciadas a receberem ilusórias benesses estatais e a entronizar seus distribuidores de tal forma que quando se procura revelar-lhes o verdadeiro objetivo destas ações encontramos, fatalmente, seu repúdio, indignação, contestações e a argumentação fatalista e fartamente pronunciada do tipo “antes isso não existia”. Tanto os militares quanto os civis possuem uma tara insaciável pelo eufemismo, arrogância, prepotência e perpetuação. A ditadura fantasiada de democracia é tão ou mais nociva que despida. Se por um lado podemos constatar significativos avanços em diversos setores econômicos e segmentos da sociedade por outro devemos analisar a relação custo/benefício deles decorrentes e assim dentro de todo um contexto ficará explicito que o primeiro tende a superar o segundo. O Estado brasileiro, desde que foi instituído, não prima em nada pela inclusão e o concurso do modelo capitalista só vem a reforçar e expandir a exclusão de milhares de brasileiros desde as mais pífias necessidades humanas até as oportunidades de acesso a uma existência mais profícua. Aliás, o Estado brasileiro é o típico “samba do crioulo doido” (Stanislaw Ponte Preta, Sérgio Porto, 1923-1968). A produtividade do Estado é infinitamente menor que seu custo e está concentrada para o atendimento dos interesses das elites que sempre o assumiram (pessoalmente ou por delegação) ou o manobraram isto visando e engana-se quem pensa que o voto contemplará seus anseios, pelo menos com este sistema eleitoral. Um exame mais atento e descobriremos os objetivos embutidos nas ações estatais, sejam elas de que ordem for. Esse desencanto faz vicejar nas pessoas o saudosismo de um período fétido à memória nacional onde se imaginavam mais seguras. Não estavam. O “respeito” era imposto pelo aparelho repressor que se mantinha azeitado através do medo, do terror, da tortura, da prisão e execução sumária, de uma vigilância contínua e severa.


O processo de alienação desenvolvido e posto em prática pelo regime militar nos meios de comunicação, em entidades da sociedade civil, sindicatos, escolas e universidades logrou sucesso, pois conseguiu seu intento que era a subserviência plena à sua doutrina ditatorial e este taxista é exemplo vivo disso. Se muitos da minha geração deixaram-se levar pelo canto da sereia diabólica é bom nem pensar na geração subsequente nascida a partir de 1985 que não vivenciou aquele período. Este saudosismo - volto a dizer - é reflexo do caos estabelecido pós regime militar e jamais um engajamento em seus pressupostos. Vítimas, potenciais ou prováveis, da violência urbana e rural compartilham da ideia de que o Estado faliu tornando-se incapaz de sustentar a ordem constitucional e, portanto, para reverter-se este quadro somente uma intervenção das Forças Armadas poderia estabelecer alguma ordem no galinheiro. Ledo engano, porém, esta alternativa é um forte sintoma da insatisfação popular por tantos mandos e desmandos nestes últimos vinte e cinco anos. A sociedade, a meu ver, não precisa e jamais deverá desejar a tutela das Forças Armadas, mesmo porque já possui experiência desse tipo e sabemos não ter sido nada boa. A sociedade, de igual maneira, não se empolga por ditaduras de direita ou de esquerda. A sociedade deve exigir, entre outras coisas, probidade, competência, eficácia e transparência do Estado brasileiro expurgando de suas hostes esta hedionda corja de malfeitores que o controlam. Não. Não se tem saudades da “Redentora” de 1964. Estamos furiosos com o fato de que ao ultrapassá-la nossas aspirações tenham sido frustradas.


CELSO BOTELHO

25.01.2010