Para aqueles de vivenciaram o regime militar (1964-1985) ou qualquer outro momento existe uma barreira muito íngreme ao examinar-se aquele período ou qualquer outro: as paixões. Estas são, inexoravelmente, o grande empecilho para a reconstrução histórica. Os relatos, depoimentos ou pesquisas realizadas não se mostram isentas, imparciais e unicamente voltadas para o fato em si e seus desdobramentos. Isto porque o historiador é, antes de tudo, um cidadão do seu tempo, parte integrante e atuante de uma cultura e carrega consigo um arcabouço de valores que, certamente, irão influenciar sua perspectiva, seu senso crítico. E isto, pode-se dizer, é o calcanhar de Aquiles deste ofício e podemos facilmente percebê-lo pela absoluta falta de consenso entre eles. Paixão e isenção são antagônicos, terrenos movediços, instáveis, entretanto, demasiadamente férteis para germinar equívocos colossais. Não devemos ignorar que estes profissionais são orientados, preparados, treinados para distanciarem-se o máximo das paixões buscando uma aproximação cada vez maior da isenção. Porém, em algum momento, consciente ou inconscientemente, as paixões extravasam. Não há neutralidade plena. É – simplesmente - impossível. Isto não quer dizer, de maneira alguma, que não seja perseguida e até mesmo alcançada em patamares consideráveis. O que pode ser tomado em consideração ao examinarmos o acontecimento histórico é o grau de envolvimento, ocular ou não, daquele que o descreve, pois, a partir daí poderemos perceber a extensão de sua neutralidade. Pode não ser o meio mais seguro para aferi-la, no entanto, fornece elementos substanciais para a questionarmos e assim buscarmos outras fontes a fim de preenchermos as lacunas abertas pelas paixões. Nenhum fato ou acontecimento jamais estará concluído por mais que tenha sido esmiuçado. A História é um livro inconcluso e, portanto, vivo que sempre irá nos instigar e, conseqüentemente, oferecendo-nos novos elementos para sua compreensão. Então, concluímos, acima de tudo devemos estar comprometidos o máximo possível com a fidelidade. Entendi que esta preleção se faz necessária para abordarmos a Lei da Anistia (nº 6.683) promulgada em 1979 que, num acordo tácito entre os militares e as lideranças civis da época, permitiram a transferência do poder sem, contudo, proporcionar um atendimento satisfatório a nenhuma das partes. Questões relevantes foram ignoradas, tratadas superficialmente e/ou sistematicamente omitidas provocando no decorrer destes trinta anos inúmeros debates, polêmicas e diversas interpretações tanto com relação ao seu conteúdo quanto sua aplicação. Há que se considerar, entretanto, o contexto no qual foi elaborada sabendo, de antemão que, neste caso, dificilmente seria possível a adoção de uma legislação que atendesse todos plenamente.
Há alguns meses escrevia neste mesmo blog que tão importante quanto se resgatar do limbo autoritário os brasileiros que foram torturados, desaparecidos, mortos e perseguidos é a abertura de todos os arquivos daquela época (Reflexões sobre a Anistia, 23.08.2009). Ora, criar uma Comissão Nacional da Verdade sem que se tenha acesso a todos os documentos não me parece lógico, a menos que especifiquem qual a verdade que desejam apurar. Segundo me parece tal órgão aponta para a satanização dos militares e a sacralização de seus opositores. É necessário que diga que fui, sou e sempre serei contrário ao regime militar que se seguiu ao golpe de 1964 e, de igual maneira, a forma como este concretizou. Ao mesmo tempo, jamais concordei com os métodos radicais utilizados por aqueles que a ele se opunham. Um ideal - seja ele qual for - para ser alcançado não deve passar pela violação de direitos. Poderíamos elencar aqui uma série de justificativas que levaram, especialmente os jovens daquela época, a tomarem as armas e se lançarem numa luta que seria, fatalmente, inglória. Havia (e há) outros meios de mobilização que são tão eficazes quanto evitando a dor e o sofrimento. Certamente a impulsividade própria da juventude fora exacerbada por uma doutrinação propositadamente equivocada ministrada por setores que imaginaram a possibilidade de usá-los como veículos para a tomada do poder. A maioria dos jovens que se envolveram nos confrontos e ações não compreendia que estavam sendo sacrificados para viabilizarem um modelo institucional que nada ficava a dever aquele que combatiam, ou pior. Os excessos foram praticados por ambos os lados e, sendo assim, as investigações, os processos e possíveis punições não podem acontecer em um único lado, isto seria arbitrário. Como poderemos sequer chegar próximos à verdade se os arquivos estão hermeticamente fechados? Esta verdade que esta Comissão propõe tem endereço? Será uma verdade para contemplar uns e execrar outros? Não me parece que há qualquer compromisso em resgatar-se a memória individual e coletiva.
Tal iniciativa provocou de imediato repúdio e indignação nas Forças Armadas fazendo com que seus comandantes renunciassem ao cargo instalando-se uma crise. O governo recuou prometendo reexaminar o decreto e somente enviá-lo ao Congresso Nacional
A redação da Lei da Anistia foi tendenciosa e amparava os militares naquele momento e no futuro, porém, encontrou ressonância na sociedade e, principalmente, entre os seus representantes
Não podemos e não devemos ter em mente o revanchismo. Tal procedimento em nada contribuirá para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito ou para a restauração da memória nacional. Entretanto, não podemos permitir que aqueles que praticaram delitos em ambos os lados possam ser eximidos de qualquer responsabilidade. Precisamos reparar as deformações e distorções existentes nas leis buscando a efetiva justiça. O governo mostra-se inábil, pulsilâmine e inconfessável em seus objetivos.
CELSO BOTELHO
05.01.2010