sábado, 23 de fevereiro de 2013

POLITICAMENTE CORRETO OU INCORRETO E INSEGURANÇA JURÍDICA





De tempos em tempos algumas palavras ou expressões assumem conotações diferentes, alcançam importância que jamais tiveram e também a perdem ou adquirem significado diverso daquele que tradicionalmente os dicionários lhes atribuíam. Não há nada de errado nisto. É um processo natural entre os falantes. Nos anos 1940 “coqueluche” (doença infecciosa aguda e transmissível que compromete o aparelho respiratório) significava o assunto do momento; “fuzarca” era confusão; “brotinho” designava uma menina e etc. Nos anos 1950 “barbeiro” era um mau motorista e ainda hoje continua sendo; “uva” era mulher bonita; “chá de cadeira importava numa demora prolongada. Nas décadas de 1960 e 1970, no Brasil, houve uma série de inovações no linguajar dos jovens, foram anos de grandes e profundas transformações nas sociedades ocidentais como, por exemplo, “barra”, difícil; “bicho”, amigo; ”joia”, tudo bem; “abrir as pernas”, não resistir às pressões, capitular; “barato”, coisa considerada excelente; “careta”, pessoa antiquada, fora de moda; “podes crer” significava acreditar e tantas outras. Nos anos 1980 “azarar” significava paquerar; “baba-ovo” era bajulador; “dar um tapa” constituía-se no ato de fumar maconha; “esperto” era algo bom, bacana; “pega-leve” ou vá devagar e por ai afora. Nos anos 1990 “antenado” era uma pessoa ligada; “baranga” referia-se a uma mulher feia; “bolado” anunciava que você ficou chateado com alguma coisa; “de lei” afirmava que algo era assim e não de outra forma; “é do bem” qualificava-o como pessoa do bem; “dimenor” era uma criança, menino ou menina; “filé” reportava-se a uma moça bonita; “fui!”, neste caso você agiu, decidiu, aconteceu, sumiu, desapareceu; “pagar mico” indicava vexame e tantas e tantas outras. Nos dias atuais também observamos essas transformações na língua falada. Mas o que nos preocupa sobretudo é o fato dos jovens aplicarem a linguagem utilizada no computador indiscriminadamente.


Mas não somente os jovens são responsáveis por esse fenômeno linguístico. Identificamos facilmente as palavras e expressões que marcaram determinadas épocas. Conceitos e “verdades” que, com o decorrer do tempo, sofrem alterações ou são suplantados e até eliminados. Também é natural. O “politicamente correto” e o “politicamente incorreto” tem sido motivo de estudos há algumas décadas. O primeiro é a maneira “polida” de abordarem-se temas sensíveis (homossexualismo, racismo, estupro, aborto, indigência, etc.) e contribui decisivamente para ampliar o contingente de imbecis e alienados que passam a temer a própria sombra. O segundo o faz sem qualquer preocupação ou receio ultrapassando não raras vezes os limites da educação, sensatez e respeito. O “politicamente correto” dá uma nomenclatura amena para as seculares mazelas e infortúnios ao invés desencadearem uma movimentação social no sentido de exigir dos governantes a adoção de políticas que, de fato, as reduzam drasticamente. Esta expressão é utilizada abusivamente por políticos demagogos, jornalistas, escritores, acadêmicos, pessoas de nosso convívio, etc. A linguagem neutra proposta pelo “politicamente correto” mascara, encobre e distorce a realidade que está diante de todos. O “politicamente incorreto” não possui linguagem neutra e, portanto, não receia e até esmera-se em ofender, denegrir ou excluir, atitude extremamente repulsiva. Qualquer ação, atitude ou comportamento que, deliberadamente, provoque ofensa, preconceito, discriminação ou aponte para a exclusão deve ser rejeitado e repelido veementemente e submetida a legislação que seja pertinente para a aplicação de punição. No entanto, usar eufemismos para suavizar situações, condições, ações e comportamentos constitui-se numa trapaça moral e intelectual. O “politicamente incorreto” se pode constatar facilmente enquanto o “politicamente correto” tende a apresentar as questões graves e polêmicas com uma suavidade que não possuem encobrindo preconceitos e discriminações. O “politicamente correto” é festejado por todos publicamente, hipócritas ou não. Porém, na prática, de modo velado e sorrateiro, estabelece distâncias e limites de modo que não perturbem o Establishment. O “politicamente correto” pinta com cores vibrantes discursos que jamais serão transformados em ações afirmativas. Também funciona como instrumento de patrulhamento ideológico, censor e intimidador do exercício do direito de livre expressão delimitando espaços e estabelecendo regras para seu controle. A postura do “politicamente correto”, definitivamente, não visa impedir a ofensa, o preconceito e a discriminação e sim maquiar realidades sociais nefastas escancaradas em nosso dia a dia. Um abacaxi será sempre um abacaxi por mais que se tente transformá-lo em outra coisa.


Morro da Providência, Rio de Janeiro

Eis alguns exemplos clássicos de eufemismo, também chamado de “politicamente correto”: Favela. Seu aparecimento está ligado ao descaso, omissão e inércia do governo Prudente de Morais (1841-1902) em 1897 quando cerca de dez mil soldados que haviam participado da Guerra dos Canudos (1896-1897) na Bahia desembarcaram no Rio de Janeiro com a reivindicação ao governo para que construísse casas aos veteranos do conflito. Sem recursos o governo permitiu que construíssem barracos de madeira no morro da Providência. Esta versão é discutível de acordo com outros estudos realizados. Mas isso é outra história. Somente em 1947 o governo reconhece oficialmente a existência das favelas. Desde seu aparecimento favela significa abandono, exclusão, marginalização. Seus moradores são vítimas do preconceito e da discriminação. A República, em seus mais de cento e vinte anos, ainda não chegou às favelas e a democracia em parte alguma, considerando o imenso contingente que não alcança. Hoje o “politicamente correto” é referir-se as favelas como “comunidades carentes”, porém o abandono, a exclusão, a marginalização, o preconceito e a discriminação aos seus moradores permanecem.


Mendigos, ou melhor, "populção de rua" no centro do Rio de Janeiro

Viaduto dos Marinheiros no Rio de Janeiro

Os mendigos, seres humanos alijados da sociedade pelos mais diversos motivos, vítimas de modelos econômicos excludentes, concentradores e até cruéis de sucessivos governos que ao invés de proporcionarem políticas públicas que favoreçam seu resgate e inserção na sociedade o que se faz é denominá-los como “população de rua” e mantê-los nas condições miseráveis, desumanas e perversas assistindo sua degradação como ser humano e cidadão. A atuação das autoridades neste sentido está restrita em recolhê-los, fornecer um prato de sopa (quando muito) e devolvê-los às ruas. Em janeiro deste ano foi noticiado na imprensa que o aluguel de um banco de praça na zona sul do Rio de Janeiro estava custando cerca de R$ 1.000,00 por conta a realização da Copa das Confederações em 2013, Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016. Caso o banco seja embaixo de uma ponte é mais caro. A hipocrisia dos defensores do “politicamente correto” é gigantesca, só vale para apontar e censurar os outros. Em março do ano passado mendigos na Rua Benjamim Sodré, na Praça Duque de Caxias e embaixo do Viaduto Jardel Filho, em Laranjeiras, Rio de Janeiro, saiam do Centro de Referência Especializada Para População em Situação de Rua (Creas POP) Bárbara Calazans, nome pomposo, “politicamente correto” e profundamente demagógico, que fornecia material de higiene pessoal, alimentação e espaço para que guardassem seus pertences e iam para a praça. E tal procedimento enquadra-se no que se chama de “politicamente correto”, ora vão plantar coquinhos no meio do oceano! Os moradores, gente “politicamente correta”, alegando que a presença deles provocava insegurança, cosumiam álcool, drogas, faziam sexo, possuíam cachorros, etc. desejavam removê-los dali. Uma moradora, jornalista, tratou de mobilizar os moradores para colher assinaturas em um manifesto endereçado ao prefeito, ao secretário de Ordem Pública e ao secretário de Assistência Social solucionar o “problema”. O comandante do batalhão da Polícia Militar responsável pela segurança na região, pessoa também “politicamente correta”, afirmou que não poderia levá-los para a delegacia pelo “simples fato” de estarem nas ruas. Em 2010 a prefeitura do Rio de Janeiro, através da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB), colocou pedras sob viadutos e armações de ferro em bancos de praças para impedir que alguém possa se deitar. São, aproximadamente, cinco mil pessoas morando nas ruas e em abrigos municipais no Rio de Janeiro. Estas “autoridades”, “politicamente corretas”, violam publicamente e impunemente direitos garantidos na Constituição Federal. Entendem que o espaço público é só para alguns. A situação existe e não será com a truculência, desprezo ou manifestos idiotas que surgirão as soluções.


Edifícios públicos ou privados sequer possuem rampa

Outro eufemismo do “politicamente correto” diz respeito às pessoas portadoras de deficiência. São chamados de “pessoas com capacidade diferenciada”. A expressão é pomposa, porém as instituições e as políticas públicas não possuem nenhuma pompa ou eficácia. Na prática estas pessoas sofrem, além do preconceito e da discriminação, a ausência ou o descumprimento das leis que tratam de seus interesses. Mesmo o direito constitucional de ir e vir lhes são negados através do descaso, omissão e conivência de administradores públicos comprometidos ou arregimentados por outros interesses diversos e corriqueiramente escusos. As cidades brasileiras contam com poucos ou nenhum equipamento urbano que facilite a vida das pessoas portadoras de deficiências. São incontáveis os edifícios públicos e privados que não dispõe sequer de uma rampa. O respeito ao ser humano e cidadão não está na elaboração de expressões eufemísticas e sim atuando efetivamente no combate ao preconceito e discriminação produzindo meios físicos que possam atendê-lo satisfatoriamente. São cidadãos e seres humanos completos e desta maneira devem ser tratados. A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU determina que todas as pessoas devem ser tratadas fraternalmente, independente de portarem ou não alguma deficiência. Este documento assegura que as pessoas com deficiência devem ter todos os tipos de necessidades especiais levadas em consideração no desenvolvimento econômico e social. A Constituição Federal define como meta a busca do bem-estar de todos, sem quaisquer discriminações. O Código Penal Brasileiro prevê punição aos atos criminosos e de desrespeito causados por fatores discriminatórios (de um a quatro anos de reclusão e multa). Deficiência e corpo lesionado são coisas distintas. A pessoa pode ser deficiente sem apresentar alguma lesão e, por outro lado, ter o corpo lesionado sem apresentar alguma deficiência. Se o termo “deficiente físico” sugere depreciar a pessoa seu substituto, “pessoas com capacidade diferenciada”, nada fica a dever. A questão não está na nomenclatura e sim nas ações positivas que se deve pôr em prática. Tanto a primeira como a segunda denominação promove o preconceito em detrimento do valor integral da pessoa. Segundo o último censo o Brasil abriga hoje cerca de 24 milhões de pessoas portadoras de deficiências ou, como querem os fariseus do “politicamente correto”, “com capacidade diferenciada”. A crueldade, o desrespeito, o preconceito e a discriminação aos deficientes são históricas. Na Roma Antiga a Lei das XII Tábuas (450 a.C.) autorizava os patriarcas a matar seus filhos “defeituosos”. A crueldade, portanto, estava amparada pela lei. Com a conversão ao cristianismo do Império Romano por volta do ano 315 d.C. começam a surgir redes de proteção as pessoas com má formação congênita ou defeitos pela lei de Constantino, O Grande (272-337 d.C.). Na Idade Média a discriminação exacerbou-se e as pessoas portadoras de deficiências físicas eram vistas com corpos que os demônios se apossaram. Naquela época pessoas deficientes eram expostas a humilhação pública como aberrações. No Renascimento tais pessoas foram consideradas um problema de saúde pública A Revolução Francesa traz outro olhar sobre os deficientes físicos, mas está longe de formular e consolidar políticas de inclusão. Reconhecemos que o Brasil possui projetos em execução afirmativos e promove intervenções significativas para a melhoria da qualidade de vida dos portadores de deficiências físicas, porém ainda nos encontramos distantes de resultados positivos amplos. À luz de um exame mais acurado percebemos que existe muita hipocrisia, descaso, desprezo, preconceito e discriminação sob o verniz do “politicamente correto”.



A Lei é a fonte da segurança jurídica, mas no Brasil isto não é levado a sério

Existe uma expressão que tenho ouvido e lido muito nos últimos meses: “insegurança jurídica”. Qualquer coisa é motivo para alguém alegar que tal e qual decisão, postura ou comportamento poderá provocar uma insegurança jurídica no país. Para começo de conversa, no Brasil, em todos os períodos e especialmente no republicano, a História não mostra muito apego à segurança jurídica. Ao contrário, desde 1889 que o país vem sendo sucumbido pelo atropelo das leis provocando o caos no ordenamento jurídico pátrio. Portanto, falar de insegurança jurídica no nosso país é como dizer que nosso planeta possui a forma esférica. A própria República, que nasceu de um golpe, foi proclamada provisória e nesta situação permaneceu até o plebiscito de 21 de abril 1993 quando 86% dos votos válidos outorgou legitimidade popular ao regime. Por mais de cem anos vivíamos numa República provisória, mas o fato da população haver legitimado o regime não o tornou melhor. A segurança jurídica comumente é evocada para dar sustentação, respaldo e vernizes aos interesses em disputa, fora isso ela pode ser ignorada, distorcida, manipulada e estuprada. O principio da segurança jurídica esta conectado com os direitos fundamentais e outros que proporcionam funcionalidade ao ordenamento jurídico como, por exemplo, irretroatividade da lei, o devido processo legal, o direito adquirido, outorga de ampla defesa e contraditório aos acusados em geral, ficção do conhecimento obrigatório da lei, prévia lei para a configuração de crimes e transgressões e cominações de penas, vedação de tribunais de exceção, etc. “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (Constituição Federal, 1988, artigo 5º inciso XXXVI). A segurança jurídica está vinculada aos direitos e garantias fundamentais expressas na Constituição Federal. A Lei é a fonte da segurança jurídica que, sistematicamente, é contaminada, alterada, distorcida e manipulada para servir aos interesses dos poderosos. As leis brasileiras de uma maneira geral e a Constituição Federal em particular jamais foram garantia de segurança jurídica. A segurança jurídica é um direito fundamental do cidadão e relaciona-se com a normalidade, estabilidade e proteção contra alterações bruscas da lei e para isso o Estado deve adotar comportamentos estáveis, coerentes e sem contradições. Um exemplo conhecido de todos de ruptura do princípio da segurança jurídica está nas aposentadorias: se o segurado hoje atende todas as exigências legais a lei promulgada posteriormente não poderá prejudicá-lo. Porém, não é o que se verifica ao longo de toda a história da previdência social. Como diria David Nasser (1917-1980) “a Constituição brasileira pode ser alterada e rasgada porque não foi Moisés quem a escreveu.”


E o poder Executivo cuida de ambos

O termo, muito em voga, adquiriu popularidade especialmente quando o ex-presidente da Câmara dos Deputados Marco Maia declarou que só quem poderia cassar o mandato dos deputados mensaleiros (João Paulo Cunha, José Genuíno, Pedro Henry e Valdemar da Costa Neto) era a Casa legislativa a qual pertenciam e não o Supremo Tribunal Federal que, por seu turno, é contrário a tal interpretação, posto que interpretar a lei e dirimir dúvidas jurídicas o STF é a última e irrecorrível instância. Há muito que os três poderes não são independentes, se é que algum dia tenham sido. A prevalência do Executivo é notória sobre o Judiciário e, notadamente, o Legislativo. O legislativo não passa de um mero departamento sem autonomia alguma do Palácio do Planalto e atua de acordo com seu ocupante e seus interesses, seja ele barbudo, bigodudo, cabeludo, calvo, usando paletó e gravata ou saia e blazer na cor vermelha, tanto faz. Insegurança jurídica é o nome do meio do Brasil. É histórico.


A solidez das leis brasileiras

Portanto, nem “politicamente correto” nem “politicamente incorreto”, apenas o que se deve dizer com todas as letras sem eufemismos, floreamentos, ofensas, preconceitos e discriminações. Quanto a segurança jurídica pode-se dizer sem receio de errar que, no Brasil, é tão sólida quanto a água no estado líquido.



CELSO BOTELHO

23.02.2013