quarta-feira, 6 de julho de 2011

PLANO CRUZADO. SARNEY DEFENDE O INDEFENSÁVEL


Poderia listar inúmeros homens públicos imprestáveis, perfeitamente dispensáveis, deploráveis e execráveis. Porém hoje falarei do senador José Sarney (PMDB-AP). Peço paciência aos demais, mas sempre que houver oportunidade os trarei aqui para este blog, mesmo correndo o risco de vir a ser molestado pela saúde sanitária. Sempre irei privilegiar os fatos, pois, afinal, eles não podem ser negados sem, contudo, estarem a salvo de manipulações e distorções. No entanto, distorcer a História é algo inaceitável, ignóbil, criminoso e deprimente. Não foi outra senão esta a intenção do veterano politiqueiro maranhense e pseudo literato. Talvez se possuísse aquele aparelhinho que Will Smith e Tommy Lee Jones usavam no filme “MIB – Os Homens de Preto” (EUA, Ficção, 1997, 98 min., direção Barry Sonnenfeld) que apagava a memória das pessoas e até de toda cidade ou país provavelmente estaria a salvo de constar nos livros de História sua questionável biografia, se é que assim podemos denominar um amontoado de cambalachos, negociatas, barganhas, etc. Minha indignação é por conta de um artigo publicado na imprensa onde o ex-presidente defende o malfadado, estúpido e safado Plano Cruzado chegando mesmo a dizer que este estelionato político-eleitoral constituiu-se nos fundamentos do Plano Real que já estava idealizado pelo ministro do Planejamento João Sayad (1945-), mas que não tinha condições políticas de fazê-lo. Para reforçar isto disse que o ex- presidente FHC (1995-2002) quando ministro da Fazenda do governo Itamar Franco (1992-1994) se reuniu com os economistas para construir um novo plano e eles disseram: “Já está pronto, é só implantá-lo.” O camarada tem que ser muito idiota quando tem à mão um plano de estabilidade econômica viável e lança mão de outro que não tinha a menor chance de se sustentar. Mas o senador amaparenhense (mistura de Amapaense com Maranhense) coroou seu supimpa artigo alegando que, caso não o adotasse, corria o risco de ser deposto pelos militares recém-saídos do governo. Um aluno do Ensino Fundamental não construiria argumentos tão ridículos, pueris e sem sustentação. Concordamos que aquele momento era ainda delicado e, volto a repetir, Sarney teve jogo de cintura para lidar com ele. A extrema-direita estava insatisfeita desde que o presidente Geisel (1974-1979) propôs uma “abertura, lenta, gradual e segura” chegando mesmo em colocá-la em risco e esteve ativa durante o governo Figueiredo (1979-1985) enviando cartas-bomba para a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), promovendo um frustrado atentado no Riocentro, explodindo bancas de jornal, etc. Porém, naquele momento não havia nenhuma ameaça concreta de retrocesso político. Portanto, não faz o menor sentido a alegação de que seria deposto. Para desmontarmos esta argumentação basta rememorarmos alguns fatos, acontecimentos e, sobretudo, dados daquela época os quais o ex-presidente sequer pode sonhar em tentar refutar ou minimizar. Os estragos provocados pela administração Sarney são conhecidos e sentidos ainda hoje. Precisamos e devemos esclarecer, especialmente aos nossos jovens, o que estas figuras representaram e, principalmente, seu legado, pois muitas das respostas que procuram encontram-se justamente na herança maldita que deles receberam.

No artigo anterior ainda minimizei a troca de postura deste senador em relação ao sigilo nas obras da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 considerando sua idade avançada, a memória “curta”, mas agora foi demais da conta. Não dá para engolir nenhuma defesa que se faça ao Plano Cruzado e sucedâneos durante seu governo. Que o velho político queira jogar em si confeti e serpentina tudo bem, é prática comum como, aliás, o fez descaradamente em sua autobiografia. Como estudioso de História sou obrigado a contestar veementemente o artigo do senador que está eivado de informações erradas. O artigo publicado pelo senador me lembra Manoel Bandeira (1886-1968) quando escrevia algo que não ficava lá a seu gosto murmurava: “quanta besteira, Manoel Bandeira”.


No governo Figueiredo a crise econômica assolava o país, ainda por conta do fim do “milagre brasileiro”. Havia falta de controle na economia, a inflação galopava freneticamente e um imenso déficit público. Deslocado do ministério da Agricultura para a Fazenda o ministro da Fazenda Delfim Neto (1928-) lançou o III Plano Nacional de Desenvolvimento, ou seja, um pacote econômico que foi por água abaixo. Naquele momento a economia mundial encontrava-se em recessão o que dificultava a entrada de empréstimos no país. No primeiro ano do governo Sarney registrou-se 225,16% de inflação a.a. No dia 28 de fevereiro de 1986 a sociedade foi surpreendida com o Plano de Estabilização Cruzado (Decreto-lei nº 2.283/86) que, basicamente, era o seguinte: congelamento de preços por um ano; os salários foram congelados pelo valor médio dos últimos seis meses mais um abono de 8% (para o salário-mínimo o abono foi de 16%), sendo criado concomitantemente o “gatilho salarial” disparado automaticamente todas as vezes que a inflação atingisse ou ultrapassasse 20%, mais as diferenças negociadas nos dissídios coletivos das diversas categorias (o salário-mínimo foi fixado em Cz$ 804,00, oitocentos e quatro cruzados); a correção monetária foi extinta e criado o IPC (Índice de Preços ao Consumidor) para a correção das cadernetas de poupança e aplicações financeiras superiores há um ano. Visto desta maneira não haveria como dar com os burros n’água. O Cruzeiro foi transformado em Cruzado que foi valorizado 1000 vezes mais, o congelamento foi para todo o varejo e sua fiscalização ficou sob a responsabilidade da população (os fiscais do Sarney), o governo garantiria a antecipação de parte do salário-mínimo visando estimular o consumo e correção automática para acompanhar a inflação.


O Plano foi um retumbante fracasso. O congelamento dos preços redundou na queda da rentabilidade dos produtores que a viram chegar próxima a zero e mesmo abaixo disso. Em decorrência desta ausência de mobilidade nos preços a escassez de produtos não tardou. O governo era (e ainda é) incapaz de controlar seus gastos e a erosão das reservas internacionais acelerava-se. A economia brasileira foi completamente destroçada pela irresponsabilidade e incompetência do governo acometido do delírio de que uma teoria poderia ser aplicada desconsiderando todo o contexto da realidade brasileira. Mas, façamos justiça, o governo Sarney não foi o único a proceder desta maneira transloucada. No primeiro momento o plano foi um sucesso tendo provocado queda significativa da inflação e crescimento econômico. Estes resultados levaram alguns integrantes do governo a acreditar em um cenário de inflação zero e então, o congelamento de preços virou o principal item do plano. Em seguida verificou-se que o próprio sucesso do plano em relação à continuidade do crescimento econômico traria pressões ao congelamento de preços, dificultando sua manutenção. Em junho de 1986 o governo tentou conter a demanda através do estabelecimento de empréstimos compulsórios sobre o consumo de gasolina, automóveis e passagens aéreas internacionais. As contas externas também sofreram significativa piora com o aumento de remessas de lucros, evasão de capital e redução dos investimentos diretos. A manutenção do congelamento foi providencial para o governo que na eleição de 1986 obteve expressiva maioria (o PMDB elegeu 22 governadores). Aqueles setores considerados prejudicados logo recorreram a mecanismos de resistência. Verificaram-se então: a redução da qualidade dos bens; a introdução de detalhes inúteis nos produtos que permitissem a elevação desproporcional do preço; a diminuição de pesos e volumes; a cobrança de ágio e a simples retirada do produto do mercado. Nos casos em que o congelamento surpreendeu os preços em níveis satisfatórios e havia capacidade produtiva excedente, as regras foram respeitadas e os lucros aumentaram com o incremento da produção. Mas tão logo atingiam a plena ocupação, recorriam a expedientes que permitissem aproveitar o desequilíbrio entre a oferta e a demanda: reduziam os prazos de pagamento, os descontos e as bonificações usuais, além de cobrarem ágios. a cobrança de ágio alastrou-se, principalmente entre os bens intermediários. O aumento da produção baseou-se no uso da capacidade instalada, carecendo o setor industrial de projetos suficientemente amadurecidos para proporcionar rápida expansão de oferta. O elenco de investimentos registrado contemplava ampliações e modernizações de plantas já existentes, não se observando programas de relevo em setores fundamentais ao crescimento. A escassez de certos componentes, que impedia o fornecimento de inúmeros bens manufaturados, também conspirou contra a ampliação mais vigorosa da produção. O estrangulamento no abastecimento assumiu tamanha intensidade não só pela expansão do consumo como também por decisões empresariais que contribuíam para fomentar este desequilíbrio. Nos cinco primeiros meses do Plano Cruzado, o setor público não adquiriu capacidade de poupar suficiente para posicioná-lo na vanguarda de um processo de retomada dos investimentos. Pelo contrário, sua situação permanecia melancólica a esse respeito. Já no setor privado havia capacidade de investimento, porém não se mostrava entusiasmo em fazê-lo diante das incertezas nas relações de produção e consumo. Em julho o governo baixou um pacote que atendia aos interesses políticos de sua base de sustentação com vistas às eleições de novembro de 1986. Estas medidas deram uma sobrevida ao Plano até que se apurassem as urnas.

Então vieram os Planos Cruzado II, Bresser. O Cruzado II foi lançado enquanto o partido governista (PMDB) ainda comemorava sua grande votação nas eleições de 15 de novembro de 1986 e sua adoção recebeu as seguintes justificativas: crescimento do consumo provocava um ao superaquecimento da economia; perspectiva de estrangulamento desastroso na oferta, principalmente em setores cruciais, como energia elétrica, siderurgia, petroquímica, papel, celulose, metais não-ferrosos e comunicações; persistência de volume insuficiente de investimentos; comportamento preocupante da balança comercial a partir de setembro, aumentando os riscos de crise cambial; o declínio dos saldos comerciais era atribuído ao incremento do consumo interno e a reduzida capacidade de investimento do setor público. Então, para resumir, ocorreu um aumento substancial no preço dos automóveis, 80%; tarifas telefônicas, 30%; energia elétrica residencial, média de 35%; energia elétrica industrial, 10%; energia elétrica comercial, 40%; tarifas postais, 80%; açúcar, 25% (via redução do subsídio); gasolina e álcool, 60% (embutido aumento de imposto); medicamentos, 10%.


Em abril de 1987 assumiu o ministério da Fazenda Luiz Carlos Bresser Pereira (1934-), era o Plano Bresser (Decreto-lei nº 2.335/36/37 de junho de 1987) após o fracasso do Plano Cruzado. Pouco depois de sua posse, a inflação no Brasil atingiu a marca de 23,21%. O principal problema do país era o déficit público, com o governo gastando mais do arrecadava. Mais uma vez recorreu-se ao congelamento dos preços, dos aluguéis, dos salários. Também foi criada a UPR, que serviu como referência monetária para o reajuste de preços e salários. Para conter o déficit público, desativaram o gatilho salarial (reajuste dos salários pela inflação), além do aumento de impostos, corte de subsídios do trigo e o adiamento de obras de grande porte já planejadas. O país passou também a negociar com o FMI. A recessão estava instalada. Debalde os esforços de Bresser, a inflação atingiu 366% em dezembro de 1987. Com isso, o ministro pediu demissão em janeiro de 1988 e foi substituído por Maílson da Nóbrega (1942-) que adotou medidas localizadas para ir tocando o barco conforme a maré inflacionária que subia, subia, subia e, em dezembro de 1988, atingia 933%. Em janeiro de 1989, lançou o Plano Verão (Lei nº 7.730/89) e, mais uma vez, a vaca foi para o brejo. Foram cortados mais três zeros do Cruzado, mais um congelamento de preços, foi extinta a correção monetária, foram propostas as privatizações de algumas estatais e cortes nos gastos públicos onde os funcionários contratados nos últimos cinco anos seriam exonerados. Não é preciso dizer que tais cortes ficaram apenas no papel que aceita tudo que se lhe escreve. O indexador utilizado para a correção das cadernetas de poupança passou a ser LFTN (Letras Financeiras do Tesouro Nacional) em substituição ao IPC. Este plano gerou uma série de desajustes às cadernetas de poupança aonde as perdas chegaram a 20,37% (prejuízos que puderam ser reavidos até dezembro de 2008). Outro fracasso no controle fiscal, diminuição do superávit e um calote na dívida externa. Esta emenda saiu muito pior que o soneto que já não prestava. De fevereiro de 1989 a fevereiro de 1990 foi registrada uma inflação de 2.751%.


O senador José Sarney está se vangloriando pelo estrondoso fracasso que pautou sua administração? Isso é, deveras, preocupante porque levanta suspeita sobre a sua senilidade. O ex-presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan (1911-2004) em 1994 escreveu uma carta à nação norte-americana assumindo que padecia do mal de Alzheimer (perda de memória, confusão mental, irritabilidade, agressividade, alterações no humor, etc.), porém há especulações de que nos anos finais de seu segundo mandato já apresentasse sinais da doença degenerativa. Quanto à legitimidade de seu governo não foi o malfadado plano que a conferiu, pois foi eleito na chapa com Tancredo Neves (1910-1985) num colégio eleitoral instituído pela ditadura e reconhecido como legal. Sua ascensão à presidência da República ainda hoje gera polêmicas por conta do Artigo 76 parágrafo único da emenda nº 1 de 1969 da Constituição Federal, mas isto é outra questão. Então, senador Sarney, não me venha com chorumelas. São inúmeros os documentos que podemos consultar sobre aquele período que não deixam dúvidas dos malefícios que o Plano Cruzado e sucedâneos em particular e a administração Sarney de um modo geral impingiram à sociedade e à nação. Tem muito mais caroço embaixo desse angu, mas fiquemos por aqui.


CELSO BOTELHO
06.07.2011