sábado, 24 de outubro de 2009

CARTA AO ONOFRE IV


Caro Onofre,


Confesso, pois, nunca haver sido um homem dado a escrever cartas e disso bem o sabes. Mais por desleixo e nada por falta de apreço às pessoas o que, deveras, me redime. Aqui vai uma curiosidade: sempre desejei iniciar uma carta dizendo “espero que estas mal traçadas linhas o encontrem gozando de plena saúde” e até cheguei a rascunhar algumas, porém, um e outro que se encontravam às minhas costas assistindo desaprovaram a idéia pondo-se a fazer dezenas de objeções estéticas. Argumentavam ser tal oração um glichê arcaico, uma imagem nada criativa, que implicava em assumir a ignorância gramatical do autor e a péssima qualidade de sua forma manuscrita de escrever e os entraves que puseram foram de tal ordem que abandonei a idéia a partir daquele momento e não sendo sequer um esporádico emissor de cartas ai mesmo que não surgiram oportunidades para desafiá-los e realizar meu desejo. Agora, cá do meu sótão, tomando o teclado para escrever-lhe vislumbrei, de chofre, a oportunidade de satisfazer tal desejo. Portanto, prezado amigo, pode se sentir homenageado por este humilde companheiro em proporcionar-lhe tal realização que pode ser coisa pequenina à vista de muitos, porém, no meu caso não o é. E, afinal, nas coisas mais simples é que se acham a essência daquelas mais complexas. Após esta nota devo recomeçar esta carta.


Espero que estas mal traçadas linhas o encontrem gozando de plena saúde. De igual modo a sempre meiga e atenciosa Veridiana e aproveito para que lhe dê ciência de minhas saudades com relação a ela e seus apetitosos quitutes sem dúvida alguma. Caso dissesse que não lhe escrevo porque o correio está arisco além de plagiar Chico Buarque de Holanda estaria mentindo descaradamente, pois, estes tempos já se foram a mais de um quarto de século. Portanto, e se o desejares pode atribuir-me adjetivos como negligente, preguiçoso que não tomarei por mal e, em hipótese alguma, afetará nossa longa e sólida amizade. Poderia, para minimizar minha displicência, alegar-lhe que os estudos nos quais estou envolvido e outros afazeres assoberbam meu dia e o comprimem de tal modo que as vinte e quatro horas tornaram-se ínfimas e saberias que, uma vez mais, mentia sem cerimônia alguma e, eis o pior, tomando-o como um crédulo incorrigível ou tolo. Então, sendo assim, fica a verdade sobre o envio de cartas com longos espaços de tempo entre si.


Onofre observei que a grande imprensa e inúmeras pessoas que se dizem atentas às questões políticas não estão dando muita importância a um fato que, na minha modesta opinião, é de grande importância para a sociedade brasileira. O presidente da República criticou severamente o Tribunal de Contas da União, a Corregedoria Geral da União e “um monte de coisas” (em suas próprias palavras) que sabe que tem poder fiscalizatório. Posso admitir que existam falhas de todas as naturezas nestas e outras instituições, que são aparelhadas, politizadas, sofrem pressões, submetem-se a interesses inconfessáveis e outras práticas nefastas. Porém, colocar-lhes a integridade total em dúvida não me parece uma atitude coerente, plausível ou correta, notadamente posta por um presidente. Lula afirmou haver embargos de obras absurdos e prepara um relatório para apresentar à sociedade embargos que não se justificavam e que funcionários de quarto escalão possuíam mais poderes que ele próprio demonstrando outra vez sua arrogância e tentativa de apequenar as pessoas. Não vejo razão alguma de tal reclamo, pois, sabia perfeitamente da existência dos órgãos fiscalizadores e não era inocente quanto ao seu funcionamento, portanto, está com a caneta desde 2003 e não a utilizou para aperfeiçoar o sistema porque não quis ou porque não lhe era conveniente politicamente ou ainda por algum outro motivo que se não me apresenta no momento. Desculpe a imagem corriqueira, mas pimenta no de outro é refresco. Lula, o PT e seus penduricalhos passaram décadas na defesa intransigente de promoverem-se todas e tantas investigações e fiscalizações quanto fosse possível e, neste momento, no limiar de seu governo descobre suas imperfeições? Ora, isso só pode ser considerado como pura e simples demagogia, justificativa capenga para explicar uma incompetência operacional monumental, levando em conta os imbróglios gerados frequentemente nas obras do PAC desde sua implementação. A imprensa, que tão bem o serviu na oposição transformou-se no boi da cara preta quando na situação, é demonizada pelo presidente que não conseguiu amordaçá-la como seria de seu gosto, porém faz suas investidas seja coibindo legalmente (ou ilegalmente), seja suprimindo polpudas verbas publicitárias. O jornal “O Estado de São Paulo” encontra-se sob censura por determinação do desembargador Dácio Vieira do Tribunal de Justiça do Distrito Federal que proibiu veículos de publicarem reportagens sobre a Operação Boi Barrica que envolve o filho do presidente do Senado Federal. Que há excessos ninguém em são consciência duvida, no entanto, o que mais incomoda o presidente não é o fato de um fiscal confundir uma pedra com um utensílio indígena e sim a exposição das mazelas praticadas em sua administração com o dinheiro público “como nunca antes na história deste país.”


Chegou a sugerir o funcionário público número um, é isso que o presidente é e não o semideus tupiniquim parido em seus delírios, da necessidade da constituição de um órgão “inatacável” para desempenhar função fiscalizatória. Isto quer dizer, naturalmente, uma instituição devidamente alinhada com os pressupostos de petistas e associados. O presidente deseja, na verdade, uma entidade completamente aparelhada desde sua formação, empenhada em manipular, escamotear e ocultar as práticas delinqüentes que são usuais neste e em outros governos anteriores. Ou seja, fariam tudo com exceção de fiscalizar qualquer coisa. Mesmo reconhecendo a deficiência das instituições e os excessos da imprensa o que sabemos de corrupção, malversação e desperdício do dinheiro público deve-se a eles e envolvem somas astronômicas e personagens que até gozavam de reputação ilibada. Não desejo imaginar o que seria com um ente dito “inatacável” criado pela administração petista. Cheguei a cogitar, meu bom Onofre, que além destes interesses poderia haver a necessidade de legar-se ao próximo governo, seja azul, cor-de-rosa (todos acabarão por serem incolores, mas jamais transparentes), um instrumento eficaz que garantisse a manutenção de concessões e acordos sem maiores ou menores contratempos. Não será difícil encontrar boa receptividade para a sugestão do presidente Lula, O Ignorante, posto que favoreça os segmentos econômicos que, de fato, sustentam o poder político.


Amigo, por ora era este assunto que deixo para sua reflexão e, naturalmente, fazer-me conhecer seus resultados. Ficarei no aguardo de missiva sua o mais breve possível e, desde já, convido-me, talvez no próximo mês ou quiçá às vésperas das festas natalinas, em desfrutar de sua companhia e de Veridiana neste belo sítio que possuem. Abraços reiterando minha amizade e apreço,


CELSO BOTELHO

24.10.2009